INTRODUÇÃO
No momento em que se comemora os 500 de do Brasil, há uma maior atenção dispensada na retomada das raízes brasileiras, como contribuição à solidificação dessa cultura. Aproveita-se essa ‘atmosfera’ de reconhecimento, ou conhecimento das origens culturais e étnicas, para destacar uma das produções mais importantes da história brasileira - ‘joalheria baiana’- jóias de enorme mistério e grande superstição feitas e usadas por negros e negras na Bahia no Sc. XIX. Esse trabalho tem como foco, uma das jóias mais representativa desse momento e pouco conhecida entre os brasileiros, a Penca de Balangandãs.
O projeto consiste em uma pesquisa sobre as Pencas de Balangandãs, nos seus aspectos formal, conceitual e histórico, sempre buscando sua abordagem simbólica, e sua representatividade para a cultura afro-brasileira. Para a análise dos significados embutidos nas jóias criadas pelos negros baianos, se faz necessária a compreensão da estética religiosa africana, e do fenômeno que aqui ocorreu: o sincretismo de deuses da África com os santos da Igreja ou, simplesmente, sincretismo religioso.
Primeiramente, para uma melhor abordagem simbólica, incluiu-se a penca de balangandãs na categoria de ‘talismãs’, e, para isso, buscou-se o subsídio da semiótica, especificamente dos símbolos. Como todo talismã possui e exerce influências próprias de seu meio circundante, a segunda parte dessa pesquisa consiste na contextualização desse objeto na história do negro na colônia, suas origens africanas, sua condição de escravo e sua relação com o ‘branco’ colonizador. Por fim, cada um dos talismãs populares ou amuletos baianos serão estudados na sua representação simbólica e na sua intrínseca relação com o processo afro-católico.
1-.SÍMBOLOS E TALISMÃS
1.1- Símbolos
O fator essencial que distingue o ser humano, como ser civilizado, dos demais animais é a sua capacidade de produzir cultura. A cultura como fim resultante da comunicação entre homens, da recepção e da transmissão de conhecimentos e experiências através de gerações. Toda essa comunicação, por sua vez, é resultado da criação, transmissão e assimilação de códigos que dão acesso a estes “saberes”, e que se chama linguagem. O homem sempre se apropriou da linguagem para conhecer o mundo e para expressar-se diante ele. Quando se fala em linguagem, refere-se a toda rede de intricadas formas e normas de comunicação e de significados de um grupo social. Essa gama de representações inclui a linguagem de ordem verbal, linguagem de sons e escrita e as formas não verbais, aquelas que se expressam por meio das danças, desenhos, esculturas e várias outras que não utilizam a palavra como elemento transmissor.
A ciência que busca o estudo de toda e qualquer linguagem se chama Semiótica. Seu objetivo é descrever e analisar as redes formais e conceituais pertencentes à linguagem. Para isso a Semiótica se utiliza do signo, como entidade essencial presente em todas as formas de comunicação sejam elas verbais ou não verbais. Ela tem “como objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido”. SANTAELLA, 1996. p.13.
Das várias fontes dedicadas à ciência da semiótica, a mais difundida e referência constante para outros estudos é a do cientista e filósofo estudioso da Lógica, Charles Sanders Pierce (1839-1914) . Segundo Pierce, “um signo é aquilo que, sob certo aspecto, representa alguma coisa para alguém, ou seja, é algo (significante) que está no lugar de uma outra coisa (significado)”.COELHO,1999. P 56 .
Ele classifica os signos dividindo-os em três tricotomias . Será dada ênfase na sua mais famosa classificação, a relação do signo com o seu objeto. Nessa categoria o signo pode ser denominado de ícone, índice e símbolo.
• Ícone é o signo que tem alguma semelhança com o objeto representado. Os ícones comunicam de forma imediata porque são imediatamente percebidos São eles a fotografias, as artes figurativas, dentre outros.
• Os índices são os signos que têm uma relação direta, causal e real com o objeto denotado. São eles os ponteiros do relógio, a fumaça como indicadora da presença do fogo, impressões digitais, nomes próprios, dentre outros.
• símbolo é o signo que representa seu objeto independente de sua semelhança (ícone) ou das suas relações causais (índice), e sim por referências abstratas em virtude da associação de idéias produzidas por convenção ou pacto coletivo. Tem-se como exemplo a cruz do Catolicismo, a cor branca representando a paz, entre outros.
Pierce classifica o símbolo como uma categoria do signo. Leva em sua consideração que a interpretação desse signo está no cerne de uma convenção e que representa um objeto ou um sentimento factível de interpretação.
Serão apresentadas algumas das definições de símbolo citadas na tabela de Epstein no livro “O Signo”
Charles Morris- O símbolo é um signo produzido por seu intérprete e que age como substituto de outro signo;
Adam Schaff- Os símbolos são objetos materiais que representam, noções abstratas;
Ferdinand Saussure- O símbolo nunca é completamente arbitrário. Há um rudimento de vínculo natural entre significante e significado;
Cassirer- os símbolos pertencem ao mundo humano de sentido. Homem como animal simbólico;
Wittgenstein- para reconhecer um símbolo no signo é necessário considerar seu uso significativo;
Gadamer- A essência do símbolo é substituir ou estar no lugar de outra coisa.
Como se pode observar, não existe uma uniformidade nas definições atribuídas ao símbolo, isso demostra como é complexa a tarefa de definir a extensão deste termo. Há um consenso que o símbolo é uma subclasse do signo, mas é importante enfatizar nesta pesquisa as opiniões de estudiosos que propõem a pesquisa do símbolo excluída de uma leitura semiótica. Estudá-lo como categoria única dá o livre curso à interpretação de suas idéias abstratas, que atingem as camadas mais profundas da psique humana , ou como diz Jung: ‘(...) Uma palavra ou imagem é simbólica quando representa algo mais que seu significado imediato e óbvio. Tem um aspecto “inconsciente” que nunca está definido com precisão ou completamente explicado(...)’. SANTAELLA, 1996.p.16
A interpretação dos símbolos interessa a muitas disciplinas, à História das Civilizações e das Religiões, à Lingüística, à Antropologia, à Arte, à Psicanálise e outras tantas.
É comum a todas essas áreas a investigação de como se dá a interpretação, a via entre o significante e significado. A linha de raciocínio para este entendimento segue uma certa homogeneidade devido ao recursos próprios de que se serve o símbolo, como a analogia, o sintoma, a parábola, o emblema, a alegoria, o atributo, o apólogo e principalmente a metáfora.
“ Os símbolos são concentrações de idéias expressas taquigraficamente, numa imagem, numa expressão. Sua característica mais geral é que envolvem sempre uma operação semelhante à metáfora, pois os símbolos são objetos sensíveis que são aplicáveis a entidades abstratas e não sensíveis”. EPSTEIN, 1990. p. 70.
Apesar de todos os esforços na codificação dos símbolos, os estudiosos enfrentam um dilema. Para interpretá-lo, têm que expandi-lo, tornar explícito seu significado, o que vale em descaracterizá-lo como símbolo. O seu paradoxo é que quando seu significado é expresso pela linguagem verbal, falada ou escrita, sua função simbólica desaparece, e o símbolo perde seu “sentido” de ser, na afirmação de Junt citada por Chevalier:
“Desde que um símbolo seja vivo, ele é a melhor expressão possível de um fato; só é vivo, enquanto prenhe de significação. Se essa significação vier à luz, ou melhor: se se descobrir a expressão que melhor formulará a coisa buscada, inesperada ou pressentida, então o símbolo estará morto: resta-lhe somente um valor histórico” CHEVALIER, 1992. P.XXII
E porque será que o símbolo não perdeu sua função, valor simbólico, seu sentido, mesmo sendo alvo de interpretações científicas e populares? Como resposta é possível dizer que seu valor simbólico tem como essência nunca ser totalmente interpretável . Seu conteúdo está sempre em constante transformação. Cabe ainda ao símbolo uma conotação pessoal, não só apenas no âmbito individual, mas no sentido do indivíduo como um todo. Todo grupo social recebe influências de diferentes culturas e sociedades, que são ainda acrescentadas por uma experiência única contextualizada em seu tempo e espaço. O símbolo é vivo, seu significado nunca se esgotará no processo cognitivo, na concepção de Wirt, “é próprio do símbolo o permanecer indefinidamente sugestivo: nele, cada um vê aquilo que sua potência visual lhe permite perceber. Faltando intuição, nada de profundo é percebido”. CHEVALIER, 1996. P.XXIII.
Por esse “algo mais”, o símbolo como nenhum (outro) signo consegue de maneira tão eficaz penetrar na mente humana. Ele possui um poder de persuasão que foi muito bem compreendido e utilizado pelos movimentos de massa, pelas ordens culturais, pelos movimentos religiosos, políticos, publicitários, entre outros. Porém o conceito de símbolo que interessa, como base à esta pesquisa é o que diz respeito à aproximação entre os dois mundos cósmicos que acompanham o homem desde os seus primórdios- o humano e o divino. O símbolo que liga o mundo visível ao mundo sobrenatural que é seguido de suas crenças, devoções e indagações. Esta é a ponte entre o consciente e o inconsciente para explicar o ‘inexplicável’ - revigora grandes conjuntos do imaginário, concepções que de certa forma não estão entre os aspectos materiais da vida.
1.2- Talismãs
O Homem sempre criou seus símbolos, para se comunicar com o seu semelhante e para explicar os fenômenos inexplicáveis, para isso, foram atribuídos conceitos abstratos às formas, figuras e seres da natureza. O registros dos símbolos mais remotos chegam até os dias atuais em sua representações nos desenhos, nas pinturas e nos artesanatos de cada povo, entre eles os talismãs e amuletos.
Os talismãs e os amuletos são símbolos de fé, crenças e superstições. A estes objetos são atribuídos poderes que realizam aspirações e desejos, são passivos de afastar as desgraças, e principalmente, ligam o Homem ao mundo espiritual.
“Assim, na procura da verdade, o homem vai criando símbolos e signos, e usando-os em seus tesouros de pedra, seus talismãs de ouro e bronze. Estes sinais referem-se a um diálogo muito antigo, o do homem e do universo, pelo caminho que leva à compreensão, a interrogação em todos os sentidos.” FARELLI;1977.Pg.15
Os talismãs são objetos feitos pelo Homem ou produzidos pela natureza, aos quais se atribui diversos poderes subjetivos que ultrapassam o ambiente físico e atingem um universo sobrenatural. O seu valor simbólico pode estar contido no seu ente natural como as conchas, insetos, alguns tipos de folhas, ou, no material em que é produzido como dentes, cabelos e os metais. Ou ainda, nas representações figurativas do talismã, como o sol, a lua, as estrelas, o circulo, a espiral as cruzes etc. Esses exemplos citados acima pertencem a uma classe de amuletos que envolve símbolos que chamados de universais, símbolos que se ligam às idéias e estão gravados no inconsciente coletivo da humanidade, para Yung são classificados por arquétipos:
“Os arquétipos manifestam-se como estruturas psíquicas quase universais, inatas ou herdadas, como uma espécie de consciência coletiva; exprimem-se através de símbolos específicos carregados de uma grande potência energética. Desempenham um papel motor e unificador considerável na evolução da humanidade” CHEVALIER;1992.Pg. XIX)
O que é comum na humanidade são as figuras enraizadas nessas estruturas constantes, universais e atemporais mas seu sentido pode variar conforme as épocas, as etnias e os indivíduos. Ou seja, além dos arquétipos universais, tem-se ainda expresso em cada talismã a simbologia provenientes das crenças culturais, das formulações dogmáticas religiosas e das organizações sociais. Ou seja, os símbolos devem ser interpretados no seu movimento em seu meio cultural.
É importante frisar que o símbolo só se torna verdadeiro quando sua significação vai além do significado objetivo, legível. Cada talismã tem sua história, uma força eterna, uma verdade, e muito de fé. Além de suas interpretações analógicas, sugere ainda o desconhecido, o místico, a simbologia individual do seu possuidor. O talismã se torna um símbolo na medida em que nunca será decodificado, totalmente compreensível, ele sempre será um objeto dividido em dois, que une e separa, expõe a dimensão humana para ocultar a dimensão divina que nunca será descoberta, se não pelo seu próprio talismã.
2- SINCRETISMO AFRO-BRASILEIRO
2.1- Os Negros no Brasil
Após o fracasso de submeter os aborígenes brasileiros à escravidão, devido a sua alta taxa de mortalidade, os negros vieram da África para suprir a necessidade da mão-de-obra escrava. A vinda de Africanos para o Brasil data do Sc. XVI.
As cifras relativas ao número de africanos que para aqui vieram não são precisas, mas estima-se que mais de 5 milhões tenham entrado no Brasil durante todo período colonial, e outros 5 milhões morreram antes de chegarem ao continente, ainda nos navios negreiros
A captura desses africanos, sempre de forma violenta, se fazia em qualquer região africana. Assim, grupos étnicos com culturas e línguas diferenciadas, aqui desembarcaram. Todas essas diversas etnias provenientes da África eram classificadas aqui, apenas por negros, como raça homogênea, diferenciados apenas pelos seus valores comerciais
São as seguintes as culturas negras vindas do ‘continente negro’: Culturas Sudanesas de religião politeísta; os povos Nagô (Iorubá) da Nigéria, Jejê ( Fon) de Daomé e Mina (Fant-Achant) da Costa do Ouro; Culturas Guineano-sudanesas islamizadas de religião monoteísta: os povos Fula, Mandinga e Haussá, no Brasil conhecidos por malês; Culturas Bantus de religião animista: representadas pelos povos de Angola, Congo e Moçambique, chamados genericamente de bantos
Havia uma política na comercialização desses escravos de misturar indivíduos de diversas procedências, a fim de evitar qualquer rebelião grupal. Povos com culturas e religiòes Essa coesão entre as diversas culturas nos “lotes” de negros foi a origem do primeiro sincretismo afro no Brasil, e que Waldemar Valente nomeou de “sincretismo intertribal” .
As posições hierárquicas das organizações africanas também foram ignoradas, pois era comum a presença de príncipes, princesas e rainhas sendo vendidos juntamente com seus ‘súditos’. É possível que esse fato tenha contribuído para a resistência das tradições africanas; pelo poder religioso de muitos líderes que continuaram a exercer sobre seu povo relações de respeito, adoração e obediência. Alguns desses governantes chegaram a alcançar status social nas irmandades religiosas na província. Como, por exemplo, a rainha-mãe da dinastia real de Aboney no Daomé, vendida como escrava no Maranhão, que teria fundado em São Luís a Casa das Minas, no início do Sc. XIX, e até hoje é considerado um dos centros mais respeitados da religiosidade africana no Brasil
Os negros-africanos não sofreram uma aculturação. Não houve, aqui, uma dominação cultural em nenhum dos lados, mas sim uma relação intercultural. A miscigenação não foi apenas biológica mas também cultural que ocorreu numa relação íntima entre brancos e negros.
2.2- A religião africana no Brasil (A Religião Africana no Brasil)
Toda a cultura brasileira é híbrida, centralizada na miscigenação, no fenômeno de fusão de culturas negro-africanas e luso-brasileiras. Destaca-se o sincretismo afro-cristão, ou simplesmente, sincretismo religioso como a mais importante manifestação da cultura afro- brasileira. A assimilação do catolicismo pelo fetichismo africano funcionou como uma poderosa “arma” contra a dominação cultural dos povos colonizadores. Arma essa, que os negros habilmente manejaram, como disfarce de suas tradições africanas:
“(...) os negros recebiam a religião cristã como uma espécie de anteparo por trás do qual escondiam ou disfarçavam coincidentemente os seus próprios conceitos religiosos. Adotaram imagens católicas e as cultuaram. Mas, na verdade, sob as invocações dos santos do catolicismo adoravam os representantes da divina corte africana. Assim despistaram a vigilância religiosa dos seus senhores. E mais do que isso: iludiram a ingenuidade dos padres na obra apostólica da catequese. Os negros se mostravam, aos seus senhores e aos missionários, convertidos à religião cristã. Na realidade, conservavam vivo o seu apegado fetichismo. (...)” (VALENTE, 1996. P 69)
O sincretismo religioso surgiu inicialmente como disfarce para os cultos africanos, mas com o tempo a associação entre santos católicos e fetiches africanos foram cada vez mais assimilados. Até os dias de hoje a manifestação sincrética é nítida nos santuários africanos, a integração de objetos africanos e católicos, e nas festas cristãs, principalmente na Bahia onde é constante a presença de adeptos de religiões africanas.
O africano encontrou no Brasil um clima tropical com extensas florestas, rios e cachoeiras, que muito se assemelhava à suas terras. Este fato torna compreensível como as religiões africanas encontram em solo brasileiro ambientes propícios para seus cultos à natureza e à seus elementos. Encontraram aqui vibrações necessárias na busca do Axé (energia vital).
O caráter opressivo dos senhores com os seus escravos, e o alto volume de trabalho diário estavam provocando fugas e algumas rebeliões. Para amenizar os problemas foi permitido o batuque , festas onde se dançava e se cantava e que já aconteciam clandestinamente. A permissão ao batuque, seguida da benevolência da Igreja em relação ao sincretismo, normalizou em certo sentido uma prática das religiões africanas. “Mais uma vez os atabaques rufam e os Deuses, felizes, dançam, dançam os mitos antigos, dançam o fogo e sua ira, dançam a frescura das cachoeiras cristalinas, dançam a onda que quebra na praias, dançam a criação do mundo.” LIGIÉRO;1999. p 10
Longe das senzalas, nos centros urbanos alguns negros conseguiam alforria, ou pelos esforços dos companheiros ou pela generosidade de seus senhores mais bondosos. A eles se juntaram mulatos e mulatas nascidos dos amores entre senhores e escravas e formavam-se então uma nova comunidade. Nessas comunidades, não havia necessariamente uma integração étnica, os negros se uniram pelas circunstâncias, que os levaram a lutar pela tradição africana e pela resistência da raça. Dessas comunidades organizaram-se centros religiosos autenticamente africanos. De novo o mundo sobrenatural e os Deuses africanos recebem homenagens de seus fiéis. De novo o mundo invisível que rege o homem chega a ser acessível.
2.3- O Candomblé
A palavra candomblé, vocábulo de origem banto que significa orar, saudar ou invocar. O termo se estende aos lugares onde as cerimônias africanas são realizadas. Os candomblés eram constituídos por ‘fiéis’ de várias etnias africanas, posteriormente algumas linhas religiosas foram se destacando como o '‘candomblé de caboclo’, hoje ubanda e os terreiros de religião ortodoxa iorubá, conhecidos atualmente por candomblé.
Numa definição sumária da religião dos iorubás, pode-se dizer que ela se apoia numa concepção monoteísta da divindade Olodumaré ou Olorum, o Ser Supremo, Deus inacessível . Não existe culto para a divindade suprema, para se comunicar com os Homens, criou os orixás. Os orixás governam e supervisionam o mundo, à eles foram destinados poderes sobre o controle das forças da natureza, tais como as águas, os ventos, os trovões dentre outros A seguir será apresentada uma descrição genérica das particularidades dos orixás mais conhecidos no Brasil, seu correspondente sincrético, seus domínios, seus fetiches e seus símbolos.
EXU- Corresponde à S. Bartolomeu; domina as aberturas, ruas e encruzilhadas. O seu fetiche é, em geral, um boneco de barro preto, quase sempre armado de tridente ou de sete espadas, boca rasgada de canto à canto, e olhos incrustados com búzios, cuja a função mágica nos xangôs (terreiros) é poderosa. É simbolizado por um montículo de terra no qual estão fincados ferros, lanças e tridentes.
XANGÔ- Corresponde à S. Jerônimo; é o orixá dos raios, trovões e tempestades. É um dos mais poderosos e atuantes dos orixás, seu nome tomou sentido mais amplo e passou a significar o próprio terreiro. Seu fetiche natural é a ‘pedra de raio’ também chamada de itá ou otá, é simbolizado pelo Oxê, machado de dois gumes.
OGUM- Corresponde à Santo Antônio (Bahia) e à S. Jorge (Rio de Janeiro). É a divindade dos ferreiros, dos guerreiros, dos agricultores e de todos que trabalham com o ferro. É simbolizado por um molho de ferramentas de ferro para a luta e o trabalho em número de 7, 14 ou 21.
OXÓSSI- Corresponde à São Jorge (Bahia) e à São Sebastião (Rio de Janeiro).Mais conhecido por Odé, é o senhor das matas, é caçador incansável e protetor dos animais. Seu símbolo é um arco atravessado por uma flecha e o erukerê, espécie de espanador feitos com rabo de boi.
OMULU- Corresponde na Bahia ora com S. Roque, ora com S. Lázaro, ora ainda com S. Bento. Conhecido também por Obaluaiê, é a divindade da varíola e por extensão das doenças em geral. Seu símbolo é o xarará, um pequeno mastro todo enfeitado de búzios.
ORIXALÁ- Corresponde ao Senhor do Bonfim e a Jesus Cristo. Conhecido também por Oxalá, é considerado o maior dos orixás. Ele é o pai, criou todos os homens e gerou muitos orixás. É simbolizado pelo paxoró, e tem como fetiches o anel de chumbo e búzios.
Os orixás femininos mais importantes são: Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã.
OXUM- Corresponde à Nossa senhora dos Prazeres. É a divindades das águas doces, feminina e muito vaidosa, é protetora das questões da mulher como a menstruação e a gravidez. Seu fetiche é uma pedra de rio e seus símbolos são leques (abebés) e as pulseiras de metal (idés).
IEMANJÁ- Corresponde à Nossa Senhora, a Mãe de Deus. É a rainha das águas do mar, e é tida como a grande mãe, generosa e superprotetora, por isso sua associação à Nossa Senhora. O seu fetiche é uma pedra ou concha marinha. Tem como símbolos também os leques, sabonetes, perfumes, colares e pentes. Seu símbolo é um leque que tem no meio o recorte de uma sereia chamado de abebé.
IANSÃ- Corresponde à Santa Bárbara. Também conhecida por Oiá, é o orixá dos ventos e tempestades e protetor dos relâmpagos. Seu fetiche é o corisco, e seus símbolos são a alcanje e o eruexim
NANÃ- Corresponde à Sant’Ana. Orixás dos mortos, da água parada das lagoas e da chuva fina que faz lama. Nanã simboliza o poder controlador das mulheres idosas, a autoridade das avós. É simbolizada pelo ebiri, também chamada ‘vassoura de Nanã’.
Os símbolos de cada orixá, são chamados de emblemas ou ferramentas. São objetos usados nas cerimônias, nas danças e mímicas de louvor à entidade. Esses objetos foram feitos em diversos materiais, sendo preferencialmente em ferro, e faziam parte do universo do candomblé. Aos poucos eles saíram dos terreiros, e se constituíram em amuletos pessoais, símbolos de devoções à seus orixás. Sua função passava a ser a de distintivo individual, bem diferentes dos rituais coletivos do candomblé. Esse aspecto será visto de forma mais abrangente no capítulo destinado aso balangandãs, mas suas representações são mostradas à seguir nos desenhos de Carybé. (Fig. 1)
Devido ao crescimento e expansão dos terreiros de Candomblé, necessitou-se de uma mão-de-obra especializada na produção dos objetos de culto, que estariam nas cerimônias públicas e privadas dos candomblés. Os artesão destinados à essa atividade receberam o nome de ‘ferramenteiros’ ou ‘ferramenteiros de santos’. Destes objetos encontram-se os emblemas dos orixás, as figas, bolas de louça, encastoamentos de dentes humanos e de animais, e outros objetos que ficavam expostos nos ‘pejis’(santuários).Os ferramenteiros também produziam os objetos corporais rituais-religiosos, os ibós e idés (pulseiras), copos (punhos) e braçadeiras e outros que faziam parte da ‘indumentária’ dos iniciados nas cerimônias (Fig. 2). Estavam presentes principalmente nos corpos femininos nas manifestações ritualísticas, onde cada objeto, cada adereço funcionavam como distintivos, identificações de cada categoria divina, orixás da terra, das águas, do mato, da água doce etc.
Da joalheria religiosa afro-brasileira algumas saíram dos cultos religiosos e se proliferaram entre os africanos da província, tais como, os punhos, também conhecido por ‘pulseira- escrava’, os colares de contas coloridas, onde suas cores simbolizam seus orixás reverenciados e os colares de contas enfeitadas com filigranas, juntamente com os amuletos isolados, ou em molhos. Os amuletos, amplamente difundidos, constavam de miniaturas de objetos ‘mágicos e emblemas dos orixás, eram usados em fios de contas, braceletes, colares de argolas, anéis. Os amuletos de significado ritualístico e religioso penetrou no cotidiano do negro africano como distintivo de sua origem, símbolos de suas crenças e devoções.
De todas as jóias usadas pelas negras e crioulas destaca-se a de “penca de Balangandãs”, peça revestida de enorme mistério e grande superstição, sua originalidade e expressividade é o tema central desse trabalho, e que veremos à seguir.
3- PENCA DE BALANGANDÃS
3.1- Pequeno histórico
A penca de balangandãs é o nome dado à jóia na qual se agrupam diversos amuletos, balangandãs, e são usadas um pouco abaixo da cintura ( Fig. 3), “área de forte significado ritual religioso por ser zona que marca a fertilidade -, sendo que alguns conjuntos bem próximo ao baixo ventre ou mesmo tocando este.”LODY,1988. Pg25. A parte onde são presos os amuletos chamamos de “nave”, “galera” ou “chave”, por vezes decoradas com motivos de pássaros e flores que simbolizam as forças da natureza presentes entre os fiéis; o pequeno parafuso que fecha a chave recebe o nome de “borboleta” devido a sua forma, como se fosse duas asinhas; a corrente onde é presa a penca denomina-se “correntão” ou “grilhão”( Fig. 4).
As pencas ou o molho de amuletos esteve originalmente no universo dos cultos religiosos africanos, juntamente com outros objetos compunham os santuários dos terreiro de candomblé, e representa Ogum. Foi na joalheria popular, porém, que o molho de amuletos se propagou como adorno pessoal e teve a denominação de Pencas de Balangandãs. Essa peça fazia parte de um universo exclusivamente feminino, e foi primeiramente identificada nos trajes das negras do “ganho” em praças públicas em Salvador no século XIX.
“As pencas de balangandãs, nos trajes femininos na Bahia e os amuletos, isolados ou em molhos, também nas cinturas, documentados por Debret e Carlos Julião, marcaram sem dúvida, um momento da história cultural do Homem africano no Brasil, quando novamente o candomblé, enquanto pólo da memória arcaica e da memória viva, somente reafirma essas qualidades de resistência, tanto no plano material como espiritual”LODY,1988. Pp20
Além do ‘ganho de comidas’, as mulheres vendiam utensílios de cozinha, aviamentos, “objetos mágicos” e outros. As vestimentas próprias dessas mercadoras negras ficaram conhecidas como “trajes de crioula”, projetadas na indumentária das ‘vendedeiras’ portuguesas do Sc. XVIII . Pouca coisa mudou na roupa das baianas, já que muito se assemelham às baianas de acarajé espalhadas hoje por todo o Brasil.
As negras do ganho acrescentaram um elemento novo e diferenciador ao vestuário- a Penca de Balangandãs. Provavelmente estas peças tenham surgido da necessidade da negra em se proteger. Contra o mau-olhado, como forma de evocar o lucro material, agradecer uma benção, a negra buscou na forma de Ogum um distintivo próprio de sua condição de mercadora. Nos balangandãs estavam representados figuras como os ex-votos, figas, bolas de louça, saquinhos de couro, dentes de animais, objetos provenientes dos cultos africanos, que, somados às medalhinhas de santos e diversos tipos de crucifixo consagrou parte de sua história sintetizando as crenças e cismas da África e todo seu imaginário com os santos e símbolos da Igreja Católica.
A penca de balangandãs proporcionou a propagação de toda uma estética afro- brasileira, fazendo com que o costume da negra se ‘enfeitar’ penetrasse nas famílias tradicionais onde negras e crioulas escravas eram adornadas com jóias de alto valor comercial e enorme superstição. Esse momento marcou o apogeu do uso de pencas no Brasil, por meio do “traje de Beca” quando escravas exibiam peças valiosas durante as suntuosas e monumentais procissões religiosas como o “corpus Cristi”, ou nas festas das irmandades próprias dos negros no recôncavo baiano, principalmente na cidade de Cachoeira . Os senhores portugueses vestiam suas escravas com jóias valiosas como forma de demonstrar seu poder e sua riqueza. Diz a tradição que a chave do argolão onde se prendiam os balangandãs ficava de posse do senhor, evitando o roubo dos amuletos valiosos. Diz também, que, alguns dos amuletos eram de propriedade das que ganhavam de seus senhores em troca de favores sexuais, e na maioria das vezes eram vendidas para alforria das próprias ou para as ‘caixas de alforria’- fundos comuns para a libertação dos escravos -. Para os senhores portugueses as jóias usadas pelas crioulas tinham exclusivamente o valor material, desconhecendo que por meio desses verdadeiros símbolos as escravas exibiam parte de sua história, sua experiência devota, o pagamento de uma promessa e principalmente os signos que unia o cotidiano negro à memória da “Mãe África”.
3.2- A Simbologia das Pencas de Balangandãs
A penca de balangandãs é, sem dúvida, a jóia mais representativa da história brasileira e um dos mais significativos ícones criados pela cultura afro-brasileira na Bahia. Essa peça de grande beleza, para muitos, é tida apenas como uma jóia comum às negras, com certo mistério sim, mas uma crença popular, mero folclore. Realmente a penca de balangandã não é de fácil compreensão. Essa peça tem uma intrigante rede de códigos, constituída por vários símbolos (amuletos) que interagem ativamente constituindo uma linguagem única e pessoal. O conteúdo simbólico desse signo é interpretado dentro de uma estética particular, por uma leitura por meio da tradição religiosa dos povos africanos, dos seus mitos, crenças e superstições
“Os balangandãs da Bahia seriam, assim, uma representação simbólica dessa velhíssima tradição do conhecimento humano e divino acumulado e esquecido: o temor do Deus onipotente pelo conhecimento de suas forças fecundantes de luz & sombra, sol & lua, terra & água, ar & fogo, homem & mulher. Braços propiciatórios e mortais, todos eles a embalar um ser de eleição terrestre: aquele feito a semelhança e imagem de Deus. Mãos diferenciadas e unas do mesmo corpo cósmico. E místico. Tudo revelado (e encoberto) pelas três palavras profanas que escondem a grande unidade tripartida: Uma Coisa Só.” HOMEM, Homem, prefácio do livro “Ourivesaria Baiana”. MACHADO. 1993
Sabe-se que o adorno corporal é usado desde as eras mais remotas por todos os povos e civilizações. Por vezes produzidos com os recursos naturais como dentes, peles e semente na fabricação de pulseiras, colares, brincos dentre outros. Com a descoberta dos recursos minerais por algumas civilizações, os adornos passam a ser executados em metais, o ouro e a prata principalmente. O conjunto dessas peças feitas em metal e gemas passaram a ser denominadas por jóias.
Sabe-se, porém, que tanto os adornos de chifres, peles, sementes e outros feitos pelos aborígenes brasileiros e as jóias de ouro e pedras preciosas dos povos bárbaros, por exemplo, não podem estar inseridos no contexto atual, mercadológico e impessoal do termo ‘jóia’. As primeiras peças corporais tinham uma conotação cultural, religiosa e ritualística. Não eram exatamente, ou tão somente, um enfeite ou decoração, consistiam em de um verdadeiro elo entre o humano e o divino, símbolo de comunicação entre o natural e o sobrenatural. Dentre esses adereços de funções religiosas há algumas que chamamos de ‘talismãs’ .
A penca de balangandãs, pode ser chamada de uma ‘jóia talismânica’, criada no cerne do candomblé e usada pelas negras e crioulas como amuletos de seus orixás e proteção contra os infortúnios e malefícios da vida. “Tudo que dirige sobre nós uma influência desejável, tudo que afasta de nós uma influência maléfica ou de magia negra é um talismã” . O que faz dessa peça um talismã único é o fato de não ser presenciada em nenhum outro lugar que não o Brasil, em nenhuma outra cultura que não a Afro-brasileira. É um símbolo do sincretismo religioso que se expressa na composição de amuletos com signos referentes à África, seu imaginário, credencies e superstições, com os ícones de fé da religião católica, seus santos, festas e liturgias, impostos pelos colonizadores portugueses.
Além do simbolismo expresso na composição dos amuletos, observa-se também referências simbólicas relacionados à própria estrutura da peça. A forma, os materiais utilizados, a etimologia, as técnicas de execução, tudo nele tem relação funcional, essa é uma especificidade do talismã, nada nele é por acaso, a presença do místico, mágico e divino são sempre uma constante.
A penca de balangandãs foi através dos tempos de luta e sofrimento, absorvendo valores cada vez mais particulares à vida do negro. Tem-se, por meio das pencas algumas referências simbólicas factíveis de interpretação, pois, seria impossível relatar a amplitude de sua simbologia, pois elas são múltiplas e individuais. Uma leitura que poderia ser a original, está inserida no contexto religioso, um ‘atributo’ à seus deuses: “a penca simboliza Ogum, deus-guerreiro, que é representado tanto na África como no Brasil por um molho de pequenas miniaturas de ferramentas para luta e o trabalho registradas primeiramente nos candomblés e depois na joalheria popular” . Uma outra interpretação, ainda de cunho religioso mas que recebe por meio de metáforas referência de sua condição de escravo: “Exu é representado pela corrente, símbolo de escravidão. Iemanjá é representada pela galera, símbolo de união para os diversos filhos da água” - “Balangandãs e Figas da Bahia” FARELLI; 1971. p.27
E no que diz respeito à nomenclatura das peças que compõem a penca, vê-se na sua etimologia a dor humana: esse conjunto dotado de simbolismo teve como nomeações para sua peças referências da gíria usada nos navios negreiros e nos artefatos de tortura. Nomes como “nave”, “galera”, “correntão” e “grilhão” são objetos carregados de dor e sofrimento causado pela crueldade dos brancos nas embarcações na rota África-Brasil. Os signos dessa dor sublimada pelos artificies da ourivesaria baiana em delicadas peças de enorme encantamento e mistério. Peças essas que simbolizam a sobrevivência da tradição africana, a consciência de sua condição de escravo e a resistência de sua identidade cultural.
Enfim, todo o conjunto de balangandãs é dotado de um poder mágico, que não se remete a nada que se conhece completamente. Trava um diálogo próprio e intransferível entre seu possuidor e as forças divinas. Não se trata apenas de uma jóia, ou um adorno, se trata de um legítimo talismã, talvez o mais significativo da história brasileira Onde o sincretismo foi traduzido na inter-relação dos amuletos: de origem africana como dentes, chifres, figas, chaves e moedas interagindo com às medalhinhas, crucifixos e outros símbolos cristãos. Como tudo no sincretismo afro-brasileiro é resultante da miscigenação, os valores religiosos dos colonizadores foram pelos negros absorvidos e relidos pela funcionalidade mágica, adquirindo outras potencialidades e interpretação social, e consequentemente, novos valores simbólicos.
3.3- Balangandãs
Hoje decodificar os balangandãs é uma tarefa quase arqueológica, seu significado calcado no processo afro-católico se propagou por via da tradição oral, o que resultou, hoje, na carência de documentos. Sobre este tema, um dos poucos estudos etnográfico existente é o de Raul Lody no seu livro Pencas de Balangandãs da Bahia onde o autor cita um raro artigo de Afrânio Peixoto de 1945, sobre os balangandãs de conteúdo devocional:
“(...) a pomba ou os santos mártires ou todos os santos, como o galo, também representando a vigilância, a pomba do Espírito Santo, de asas abertas e cruz feita com a cabeça e cauda. São Jorge ou Oxocê, santo guerreiro e caçador, é representado pela lua, pela espada, pelo cão e pelo veado. São Jerônimo ou Xangô se representa pelo burro, pelo carneiro, pelo caju, o abacaxi e o milho. Santo Antônio ou Ogum pela faca, pelo porco. São Lázaro ou Omulu é representado pelo cão ou a fidelidade, e, às vazes, também pelo porco. São Cosme e São Damião se representam pela moringa d’água. Santo Isidoro ou Omulu moço (São Lázaro) contenta-se com o boi. São Bartolomeu no culto “cabloco” tem o sol. Sant’Ana, ou a mestra da Virgem, Nanã, tem por símbolo a palmatória. Nossa Senhora da Conceição ou Oxum fica com as uvas.(...)”LODY, 1988.p.28
Assim como no artigo de Afrânio Peixoto que não aprofunda as questões sobre a escolha dos signos para a representação dos orixás do candomblé e santos católicos, outros autores também só traçam um paralelismo simbólico entre o ícone, os santos católicos e os deuses africanos.
É importante analisar o amuleto nos seus aspectos de composição. Aspectos como, o material empregado na sua fabricação, suas cores, sua manufatura esses elementos podem fornecer muitas vezes possibilidades de vias de representação na sua leitura simbólica.
Os negros malês que já conheciam na África as propriedades e o manuseio dos metais, introduziram no Brasil as técnicas de fundição de metais nas pencas e nos balangandãs. O metal era trabalhado dentro dos moldes tradicionais, como em qualquer outro trabalho de ourivesaria: A fundição segue o mesmo processo do bronze, coando o metal incandescente no vazio da forma de argila; o alto e baixo relevo era obtido batendo o martelo e usando punções, a gravação é feita com o cinzel; a filigrana é obtida com o entrelaçamento de fios de prata. Os amuletos não eram elementos exclusivos das pencas, eles estavam presentes nos broches, nos colares, nas pulseiras e nos Kelês.
As peças de metal trazem um conteúdo forte por simbolizar Ogum - O artesão divino que domina todos os metais. Existe uma relação profunda entre o artesão dessas peças com o orixá ferreiro, patrono dos ofícios ligados ao ferro. As habilidades manuais, a técnica, a agricultura e a guerra estão sob seu domínio, pois com o mesmo ferro se faz esculturas, máquinas e armas de fogo e diferentes ferramentas úteis para a sobrevivência. De um modo geral Ogum trabalha na frente, começando coisas novas, simboliza a energia indomável, capaz de gerar forças para nos fazer superar os mais difíceis obstáculos. Ogum permanece na memória popular como o orixà vigilante, que com ferocidade e bravura oferece armas que defenderão a manutenção do poder dos reis e sacerdotes.
Outros materiais, além dos metais, se misturavam nas pencas como as gemas coloridas, dentes e chifres de animais, cabelos humanos, diferentes tipos de madeira, chifres de besouro, esporões de galo e outros. Signos representativos do imaginário africano e que de certa forma pertencem às estruturas psíquicas universais defendidas por Yung, e são encontradas com diversas simbologias, de acordo com a época, local e cultura.
É comum deparar-se com figuras que contenham mais de um significado, e simbolismos expressados por mais de um significante. Segundo Chevalier às vezes é possível se ter mais de uma interpretação de um símbolo, a leitura simbólica por vezes extrapola sua representação, “Um só significante induz-nos ao conhecimento de mais de um significado; ou, para simplificar, o significado é mais abundante que o significante” CHEVALIER;1992. P XXIV
Para uma melhor análise sobre a simbologia das figuras dos balangandãs eles podem ser classificados em quatro grupos: devocionais, votivos, evocativos e propiciatórios;
Devocionais: são os que revelam que seu possuidor tem uma determinada devoção. São ícones que revelam a divindade devotada como os relicários com medalhas de santos ou santas, as ferramentas e emblemas dos os orixás como a espada, que se remete à São Jorge, ou ainda símbolos próprias dos santos devotos, tais como, a pombinha, representando Espírito Santo; cruzes e crucifícios e por aí em diante
Votivos- são os que representam uma graça alcançada, podendo mesmo serem chamados de “ex-votos”. Sua representação consta de cabeças, troncos, braços, pernas, pés e outras partes do corpo registrando a ação do milagre e devolvendo ao santo a cura em forma de agradecimento material. Hoje os ex-votos são confeccionas em madeira, cera, gesso, barro e são depositadas nos altares de oferendas, cuja finalidade continua sendo o pagamento de uma graça alcançada por intermédio divino. A arte ex-votiva é a representação do imaginário afro-brasileiro, e tem nexo e reflexo nas máscaras antropomorfas e zoomórfas dos negros africanos. “Talvez a força plástica e simbólica das máscaras tenha encontrado nas esculturas ex-votivas um canal de expressão e de comunicação ritual, religiosa e social” LODY,1988. P15. Assim como na África, no Brasil os ícones de partes do corpo humano valorizam-se simbolicamente numa relação individual, ou seja, na relação entre o devoto e a divindade.
Evocativos- são os que lembram um acontecimento alegre, simbolizam uma recordação distante. O cacho de uvas, além de simbolizar a fartura lembra ainda, com os barris e as garrafinhas, as festas da vindima, de origem portuguesa; o pandeiro simbolizando o culto caboclo; o tambor , que embora na África fosse instrumento de guerra, é no Brasil instrumento musical, marcando o ritmo dos candomblés e simboliza as festas ritualísticas nos candomblés.
Propiciatórios- são os que propiciam boa sorte, a fortuna, a felicidade e o amor. Apresentam-se como pequenos barris de água, encastoadas em prata, contra o mau olhado; figas diversas; dentes de jacaré ,boa dentição; as moedas, fortuna; os bastões ocos em prata onde pós misteriosos eram escondidos como pó de pemba (giz) , manjericão, terra de cemitérios entre outros; o caju e o cacho de uvas eram propiciatórios da fartura à mesa e alívio nas amarguras da vida; a romã que simboliza a fecundidade; o abacaxi era indicado para proteger das doenças do peito; as espada simbolizava S. Jorge, Ogum, protetor das pessoas que andam pelo mato.
Sem dúvida, a classe de balangandãs que teve seu conteúdo mais popularmente difundido foram os propiciatórios. Esse símbolos ‘sagrados’ devidamente preparados (rezados) funcionam como seguranças para seu possuidor. Vejamos mais alguns destes. Amuletos:
A aranha simboliza a tentação; o corcunda- o bom augúrio; o signo-de-salomão- a boa sorte; o cágado e o jabuti proporcionam muitos anos de vida; o caju e os cachos de uvas são atraentes de fartura; o abacaxi cura as doenças do peito; a espada sempre simbolizando a defesa; a româ e a meia lua simbolizam a fecundidade; o trevo, a felicidade conjugal; o galo, a vigilância; o caranguejo, a fidelidade; a ferradura, a felicidade; o coração, a paixão; as mãos dadas, a amizade; o caranguejo, a felicidade; a figa, proteção contra o mau olhado, e tantos outros.
Mesmo não sendo comum às pencas, vale a pena destacar o Patuá, amuleto propiciatório tão cantado pelos artistas baianos, e que traz em si a necessidade antiga de levar junto ao corpo recipientes contendo objetos sagrados. Esses objetos nasceram da necessidade de se proteger contra as forças do mal, dos enigmas das trevas, do demônio. Na Idade Média, surgiram as relíquias como, fios de cabelo, dentes humanos, fragmentos de hábitos qualquer coisa que tivesse sido tocada pelas as mãos do emissário de Deus, depositados em relicários, estes, bentos e ungidos por água, orações e outros rituais. O fiel ao (usá-lo) usa-lo junto ao corpo estaria protegido contra o maior dos inimigos, o demônio, tão valorizado pela igreja católica e temido por todos.
Na África, esses recipientes foram chamados de patuás. Os patuás são pequenas bolsas em couro, nas quais estavam contidos verdadeiras porções ‘mágicas’: ervas, pós misteriosos, raízes excêntricas misturados à elementos que simbolizavam os orixás.
“Um dos patuás mais antigos dos africanos era feito desta maneira: uma conta de santo que a pessoa tem como protetor, um pedaço de erva chamada de mil homens, um dente de alho, uma raiz de dandá. Tudo isso devia ser colocado numa bolsinha de couro e levada ao pescoço. Segundo os sacerdotes nagôs este patuá cortava qualquer feitiço” FARELLI, 1981. P. 51
Os patuás baianos sãosaquinhos de couro contendo materiais de axé- mistério africano- , pós, raízes, folhas, sangue e outros. Um elemento interessante depositado nesses saquinhos eram algumas “suratas” do Alcorão introduzidos pelos negros malês da Bahia e que eram acrescidos de sangue de carneiros, certas ervas, búzios, raízes, folhas, pós de cemitérios que funcionavam como protetores do corpo, do trabalho, das coisas do amor, sendo os precursores dos atuais patuás da Bahia.
A mitologia africana e os símbolos desses povos não foram incluídos nas obras referenciais de Carl G. Yung, mas usando a sua definição sobre o tema exposto em seu livro “O Homem e seus Símbolos” pode-se dizer que todos esses amuletos funcionam como arquétipos, “imagens psíquicas reveladoras de informações contidas no inconsciente coletivo, que, por sua vez, armazena experiências e conhecimentos que pertencem a toda a humanidade, desde passados imemoriais,” LIGIÉRO, 1999. p 49
De todos esses amuletos pertencentes à penca de balangandãs, um dos mais interessantes, e sobretudo mais divulgado é a figa, esse amuleto trazido da África e que hoje se constitui em um símbolo verdadeiro da cultura afro-brasileira.
3.4-Figas
A figa é com certeza o amuleto mais tradicional do povo brasileiro. Todos os brasileiros sabem das superstições que rondam este objeto. Devido ao seu significado de ‘proteção’, ela é usada por católicos , adeptos do candomblé, por simpatizantes, ou mesmo por curiosos.
Sua origem, ao contrário que muitos pensam, não é brasileira. A figa é na verdade o símbolo da fertilidade, sua crença provém dos velhos cultos fálicos da Ásia e África.
“As primeiras figas, provavelmente, foram feitas do tronco da figueira, árvore nativa das regiões áridas da Ásia, da África do Norte e da Europa circumediterrânea. Entre os caldeus e cananeus, a figueira era tida como símbolo da vida e de fecundidade, como se pode ver na parábola da figueira estéril, do Evangelho, amaldiçoada por Jesus. E ainda como sinal de proteção: é da figueira que Adão e Eva recolhem folhas para recobrir sua nudez.” FARELLI, 1981. Pg 40
No Brasil, a figa esteve primeiramente presente nos cultos religiosos africanos, depois, saiu dos terreiros integrando-se ao costume e ao imaginário de todo um povo. Existem alguns tipos de figas, a mais comum e tradicional é conhecida como a figa fálica (Fig. 6), configurada na mão fechada e tem o polegar entre o indicador e o médio, simboliza a reprodução: “(...)representando assim o poder do sexo, no qual o dedo polegar simboliza o órgão viril e o indicador e o médio configuram os grandes lábios do órgão feminino.” . Um outro tipo de figa é a figa cornuda (fig. 7), esta é representada pelos dedos mínimo e indicador paralelos e os demais encolhidos serve para afastar os malefícios. “Esta figa representa a cabeça de boi ou de vaca com os dois cornos (...) pois na antiga acepção, a força do touro estava simbolizada nos chifres” . Aqui no Brasil essa figa é acompanhada do termo isola, e serve para espantar as coisas más, e livrar dos maus olhados.
Guardar as figas junto ao dinheiro, faz aumenta-lo; quando a figa se quebra, por queda, ou mesmo se rachar por si só, é indício que o agouro pegou nela. Essas são algumas das superstições e crendices que existem a cerca desse objeto. Tem-se ainda a figa como símbolo emblemático dos orixás africanos, tais como, a figa marombá (Fig. 8),que simboliza Oxalá, a figa de Omolu (Fig. 9), pais dos pobres, simboliza fartura e poder e a figa de Xangô (Fig. 10) que simboliza o poder de abrir e fechar qualquer trabalho.
As figas eram confeccionadas preferencialmente em madeiras escuras como arruda, jacarandá e guiné, porém outros materiais eram empregados na sua feitura, ouro, prata, chifre, marfim, e gemas coloridas como jade, cornalina, coral rosa e vermelho e ágatas de todas as cores. A cor inclusive era o elemento diferenciador na representação desses objetos e nas suas funções. No candomblé baiano, onde o sincretismo religioso é uma constante, a coloração das figas tem um significado especial, além dos atributos propiciatórios, também simbolizam um santo católico e seu orixá correspondente, vejamos algumas delas :
As amarelas- Oxum, Nossa Senhora da Conceição; propicia a volta da memória
As azuis - Iemanjá, Nossa Senhora e simboliza limpeza e alegria e são utilizadas para aclarar idéias e trazer contentamento
As verdes- Oxóssi, São Jorge, simboliza esperança e transmite confiança para as pessoas aflitas
As pretas- Omulu, São Lázaro; símbolo de dor, protege contra as doenças e sofrimentos da vida; representa também Exu, São Bartolomeu, livra dos maus-olhados e simboliza o poder do sexo.
As vermelhas- Xangô, Santo Antônio, símbolo do fogo e do amor, transfere calor e vida para os seres e protege contra os efeitos do trovão.
As brancas- Oxalá, Nosso Senhor do Bonfim, símbolo de pureza e de paz, serve para purificar e apaziguar os ânimos.
As douradas, ou de ouro- Oxum-Maré, Nossa Senhora das Candeias
As azuis- Ogum, Santo Antônio, símbolo de revolta, livra das intrigas e ajuda nas lutas e combates da vida.
A cor- de-rosa- Nanã, Sant’Ana, simboliza serenidade e trás calma e tranqüilidade para as pessoas, e faz recordar um fato agradável.
Tem-se ainda as feitas com coral, que representam Iansã (Santa Bárbara), simbolizam atenção, defendem contra os raios e tempestades, evitam desgraças, secam o sangue das feridas e atraem amores, as pretas de azeviche ( tipo de carvão fóssil) atuam contra a inveja.
Algumas figas são bem curiosas quando enfeitadas com pequenos ornamentos feitos à moda dos negros, são unhas pintadas, punhos e dedos ornados com pulseiras, pencas e anéis (Fig. 11). As figas estavam presentes na pencas de balangandãs, nos colares de contas, correntes, pulseiras, nas guias, e eram encastoadas em prata, ouro e alpaca.
A figa é um dos símbolos mais representativos da estética afro-brasileira e até hoje permanece com seu simbolismo guarnecido de cismas e crendices trazidos da misteriosa África. Cortando a inveja, abrindo caminhos, a figa mostra que a crença do povo africano é forte. Esse povo que enfrentou a humilhação, o desprezo e a crueldade de punhos fortes, de punhos fechados e punhos duros como os das suas figas.
Para os brasileiros, a figa simboliza a força de uma tradição centrada nas crenças negras, era, e é muito comum nos batizados católicos os padrinhos e madrinhas presentearem seu afilhados com correntinhas e pulseirinhas com figuinhas, que quando postas na criança agem contra o mau-olhado e o quebranto. Para os turistas que para aqui vêm, são produzidas industrialmente milhares de figas, de plástico ou metal banhado. Pouco desses milhares de estrangeiros que visitam esse país, sabem dos verdadeiros atributos dessa peça. Contudo, a figa se tornou, no mundo inteiro, um símbolo da resistência negra nesse país, um símbolo do Brasil.
VI- CONCLUSÃO
A contribuição artística do Negro ao acervo cultural e artístico brasileiro é incontestável. No Sc. XVI, africanos de várias etnias se misturavam entre os aprendizes nas corporações de ofícios. As corporações de ourives trabalhavam nos objetos litúrgicos destinados aos suntuosos cultos da “Santa Igreja Católica. Posteriormente, para suprir a alta demanda por objetos profanos, peças decorativas para residências e palácios senhoriais como farinheiras, castiçais, os paliteiros dentre outros, vieram para o Brasil renomados ourives de Portugal, principalmente de Lisboa e Porto. Os mestres portugueses agregaram auxiliares que muitas vezes eram constituídos por negros, forros e alugados. Os oficiais portugueses fizeram discípulos, suas oficinas transformaram-se em escolas, e delas nasceram os prateiros brasileiros que aos poucos foram se tornando os melhores do Reino. Fato que desembocou na hegemonia negra e parda na ourivesaria dos séculos XVIII e XIX.
No Sc. XIX, auge da joalheria baiana, muitos dos mulatos de Salvador, que já aprendera com seus mestres os processos de confecção das jóias, trabalhavam também nas obrigações dos candomblés. Contribuíam com suas habilidades na manutenção de uma tradição, servis à sua religião. Fabricavam os amuletos, patuás, ex-votos e outras jóias cheias de encantamento que compõe esta joalheria, símbolos verdadeiros de uma cultura, com significados perpetuados e respeitados até os dias de hoje.
Esses objetos, hoje, são produzidas em larga escala, os patuás são produzidos em plástico imitando couro e recebem cores conforme os orixás, amarelo para Oxum, azul para Oxóssi, branca para Oxalá, e assim sucessivamente; as figas são produzidas em vários materiais, sobressaindo as de plástico negro; os balangandãs são miniaturas dos amuletos e estão em pequenas pencas, broches e pulseiras. Esses objetos são vistos como lembranças da Bahia, vendidas aos milhares para turistas de todo o mundo que vão à Salvador, envolvidos pela cultura mística e religiosa do povo baiano. Essas peças com significados tão ricos e tão representativos de nossa cultura, com o passar do tempo e com a massificação, receberam o genericamente o conceito de símbolo do ‘Brasil Negro’, provenientes da magia e crendices dos baianos. Porém, as simbologias próprias de cada uma dessas delicadas jóias, produzidas pelos artificies negros nos casarões do Pelourinho, se perderam. Seus significados que iam além de seus ícones, chega ao mundo contemporâneo como referências históricas, suas funções religiosas como ‘crendices populares’, e sua magia como curiosidades, autêntico folclore brasileiro. Folclore ou arte, as jóias baiana, do SC. XIX, constitui um testemunho de nossa história, peça estrutural do patrimônio cultural e artístico do Brasil.
Esse trabalho tem como objetivo a reflexão a cerca das funções primordiais das jóias. Infelizmente o mundo industrializado que vivemos a descaracterizou como manifestação simbólica e artística produzida por um grupo. Hoje ela simboliza na maioria das vezes, apenas o poder econômico e social do seu possuidor. Por outro lado, é incontestável o valor artístico das joalherias, egípcias, pré-colombianas, e mesmo dos adornos corporais dos aborígenes. A joalheria é, na sua essência , criadora e propagadora de símbolos, fonte de expressividade individual e cultural, elo de ligação entre o humano e o sobrenatural. A jóia, quando inserida nesses valores essenciais, se transforma em uma linguagem, um canal próprio de criação e de propagação de saberes. A joalheria é uma importante fonte de estudos para áreas afins como a antropologia, a sociologia, os estudos da religião e a arte. Mas sua linguagem deve ser analisada e interpretada pelos estudiosos da joalheria, e são para estes que dedico esses trabalho.
Como já dito anteriormente, essa monografia aproveita esse clamor pela descoberta de nossas raízes para evidenciar esse período em que o Negro registrou aqui suas tradições e seus saberes nessa arte que é a Joalheria. Arte essa que não tem merecido muita atenção entre os divulgadores de Arte???. Para que a joalheria, hoje, volte a ser incluída ao universo artístico, é necessário que os joalheiros e os designers, volte o olhar para as jóias autênticas, retirando delas os verdadeiros ensinamentos sobre o quão importante ela é para a história da humanidade, e sobre as suas reais propriedades que as tornam verdadeiros capítulos do ‘livro das artes’. fontes de pesquisa e referenciais para novos trabalhos.
No momento atual o termo ‘multiculturalidade’, seguido de seus conceitos, se tornou um tendência em várias áreas do saber, e também se faz presente no panorama internacional do design de jóias. Na joalheria essa tendência tem como referência os estudos sobre a “joalheria étnica” . A possível contribuição desse trabalho para a área da joalheria, é a de mostrar as possibilidades de pesquisa e de referências criativas nas jóias produzidas em solo brasileiro, sendo esses os principais instrumentos na busca da identidade cultural na joalheria brasileira. Novas escolas de confecção de jóias surgem em todo o Brasil, universidades abrem espaço para a especialização de profissionais , o público consumidor se mostra cada vez mais exigente por qualidade e originalidade, o momento para essa atividade está cada vez mais propício. Porém, se continuar a se ver jóias que não se referencie em nada à cultura brasileira, que não traz em si nenhum simbolismo familiar, e sem uma linguagem própria, de nada vale as iniciativas de formação e capacitação de profissionais,
É preciso enxergar a joalheria baiana, assim como os adornos indígenas e outras e produções brasileiras, de forma menos eurocêntricas, analisa-las portanto, com uma visão descompromissada com os cânones ocidentais de arte. Essa monografia centralizou sua pesquisa nas pencas de balangandãs e nos amuletos baianos, porém, são inúmeras as jóias pertencentes à esse período e à essa cultura. São os punhos, os colares de contas enfeitadas, os colares de alianças, os languidibá ( colares feitos com chifres e asas de besouro), os anéis e brincos, enfim, jóias que merecem igual atenção como fonte de criação e de pesquisa devido a sua simbologia expressa na cultura brasileira bem como o seu valor representativo na história da joalheria no Brasil.
No momento em que se comemora os 500 de do Brasil, há uma maior atenção dispensada na retomada das raízes brasileiras, como contribuição à solidificação dessa cultura. Aproveita-se essa ‘atmosfera’ de reconhecimento, ou conhecimento das origens culturais e étnicas, para destacar uma das produções mais importantes da história brasileira - ‘joalheria baiana’- jóias de enorme mistério e grande superstição feitas e usadas por negros e negras na Bahia no Sc. XIX. Esse trabalho tem como foco, uma das jóias mais representativa desse momento e pouco conhecida entre os brasileiros, a Penca de Balangandãs.
O projeto consiste em uma pesquisa sobre as Pencas de Balangandãs, nos seus aspectos formal, conceitual e histórico, sempre buscando sua abordagem simbólica, e sua representatividade para a cultura afro-brasileira. Para a análise dos significados embutidos nas jóias criadas pelos negros baianos, se faz necessária a compreensão da estética religiosa africana, e do fenômeno que aqui ocorreu: o sincretismo de deuses da África com os santos da Igreja ou, simplesmente, sincretismo religioso.
Primeiramente, para uma melhor abordagem simbólica, incluiu-se a penca de balangandãs na categoria de ‘talismãs’, e, para isso, buscou-se o subsídio da semiótica, especificamente dos símbolos. Como todo talismã possui e exerce influências próprias de seu meio circundante, a segunda parte dessa pesquisa consiste na contextualização desse objeto na história do negro na colônia, suas origens africanas, sua condição de escravo e sua relação com o ‘branco’ colonizador. Por fim, cada um dos talismãs populares ou amuletos baianos serão estudados na sua representação simbólica e na sua intrínseca relação com o processo afro-católico.
1-.SÍMBOLOS E TALISMÃS
1.1- Símbolos
O fator essencial que distingue o ser humano, como ser civilizado, dos demais animais é a sua capacidade de produzir cultura. A cultura como fim resultante da comunicação entre homens, da recepção e da transmissão de conhecimentos e experiências através de gerações. Toda essa comunicação, por sua vez, é resultado da criação, transmissão e assimilação de códigos que dão acesso a estes “saberes”, e que se chama linguagem. O homem sempre se apropriou da linguagem para conhecer o mundo e para expressar-se diante ele. Quando se fala em linguagem, refere-se a toda rede de intricadas formas e normas de comunicação e de significados de um grupo social. Essa gama de representações inclui a linguagem de ordem verbal, linguagem de sons e escrita e as formas não verbais, aquelas que se expressam por meio das danças, desenhos, esculturas e várias outras que não utilizam a palavra como elemento transmissor.
A ciência que busca o estudo de toda e qualquer linguagem se chama Semiótica. Seu objetivo é descrever e analisar as redes formais e conceituais pertencentes à linguagem. Para isso a Semiótica se utiliza do signo, como entidade essencial presente em todas as formas de comunicação sejam elas verbais ou não verbais. Ela tem “como objetivo o exame dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno como fenômeno de produção de significação e de sentido”. SANTAELLA, 1996. p.13.
Das várias fontes dedicadas à ciência da semiótica, a mais difundida e referência constante para outros estudos é a do cientista e filósofo estudioso da Lógica, Charles Sanders Pierce (1839-1914) . Segundo Pierce, “um signo é aquilo que, sob certo aspecto, representa alguma coisa para alguém, ou seja, é algo (significante) que está no lugar de uma outra coisa (significado)”.COELHO,1999. P 56 .
Ele classifica os signos dividindo-os em três tricotomias . Será dada ênfase na sua mais famosa classificação, a relação do signo com o seu objeto. Nessa categoria o signo pode ser denominado de ícone, índice e símbolo.
• Ícone é o signo que tem alguma semelhança com o objeto representado. Os ícones comunicam de forma imediata porque são imediatamente percebidos São eles a fotografias, as artes figurativas, dentre outros.
• Os índices são os signos que têm uma relação direta, causal e real com o objeto denotado. São eles os ponteiros do relógio, a fumaça como indicadora da presença do fogo, impressões digitais, nomes próprios, dentre outros.
• símbolo é o signo que representa seu objeto independente de sua semelhança (ícone) ou das suas relações causais (índice), e sim por referências abstratas em virtude da associação de idéias produzidas por convenção ou pacto coletivo. Tem-se como exemplo a cruz do Catolicismo, a cor branca representando a paz, entre outros.
Pierce classifica o símbolo como uma categoria do signo. Leva em sua consideração que a interpretação desse signo está no cerne de uma convenção e que representa um objeto ou um sentimento factível de interpretação.
Serão apresentadas algumas das definições de símbolo citadas na tabela de Epstein no livro “O Signo”
Charles Morris- O símbolo é um signo produzido por seu intérprete e que age como substituto de outro signo;
Adam Schaff- Os símbolos são objetos materiais que representam, noções abstratas;
Ferdinand Saussure- O símbolo nunca é completamente arbitrário. Há um rudimento de vínculo natural entre significante e significado;
Cassirer- os símbolos pertencem ao mundo humano de sentido. Homem como animal simbólico;
Wittgenstein- para reconhecer um símbolo no signo é necessário considerar seu uso significativo;
Gadamer- A essência do símbolo é substituir ou estar no lugar de outra coisa.
Como se pode observar, não existe uma uniformidade nas definições atribuídas ao símbolo, isso demostra como é complexa a tarefa de definir a extensão deste termo. Há um consenso que o símbolo é uma subclasse do signo, mas é importante enfatizar nesta pesquisa as opiniões de estudiosos que propõem a pesquisa do símbolo excluída de uma leitura semiótica. Estudá-lo como categoria única dá o livre curso à interpretação de suas idéias abstratas, que atingem as camadas mais profundas da psique humana , ou como diz Jung: ‘(...) Uma palavra ou imagem é simbólica quando representa algo mais que seu significado imediato e óbvio. Tem um aspecto “inconsciente” que nunca está definido com precisão ou completamente explicado(...)’. SANTAELLA, 1996.p.16
A interpretação dos símbolos interessa a muitas disciplinas, à História das Civilizações e das Religiões, à Lingüística, à Antropologia, à Arte, à Psicanálise e outras tantas.
É comum a todas essas áreas a investigação de como se dá a interpretação, a via entre o significante e significado. A linha de raciocínio para este entendimento segue uma certa homogeneidade devido ao recursos próprios de que se serve o símbolo, como a analogia, o sintoma, a parábola, o emblema, a alegoria, o atributo, o apólogo e principalmente a metáfora.
“ Os símbolos são concentrações de idéias expressas taquigraficamente, numa imagem, numa expressão. Sua característica mais geral é que envolvem sempre uma operação semelhante à metáfora, pois os símbolos são objetos sensíveis que são aplicáveis a entidades abstratas e não sensíveis”. EPSTEIN, 1990. p. 70.
Apesar de todos os esforços na codificação dos símbolos, os estudiosos enfrentam um dilema. Para interpretá-lo, têm que expandi-lo, tornar explícito seu significado, o que vale em descaracterizá-lo como símbolo. O seu paradoxo é que quando seu significado é expresso pela linguagem verbal, falada ou escrita, sua função simbólica desaparece, e o símbolo perde seu “sentido” de ser, na afirmação de Junt citada por Chevalier:
“Desde que um símbolo seja vivo, ele é a melhor expressão possível de um fato; só é vivo, enquanto prenhe de significação. Se essa significação vier à luz, ou melhor: se se descobrir a expressão que melhor formulará a coisa buscada, inesperada ou pressentida, então o símbolo estará morto: resta-lhe somente um valor histórico” CHEVALIER, 1992. P.XXII
E porque será que o símbolo não perdeu sua função, valor simbólico, seu sentido, mesmo sendo alvo de interpretações científicas e populares? Como resposta é possível dizer que seu valor simbólico tem como essência nunca ser totalmente interpretável . Seu conteúdo está sempre em constante transformação. Cabe ainda ao símbolo uma conotação pessoal, não só apenas no âmbito individual, mas no sentido do indivíduo como um todo. Todo grupo social recebe influências de diferentes culturas e sociedades, que são ainda acrescentadas por uma experiência única contextualizada em seu tempo e espaço. O símbolo é vivo, seu significado nunca se esgotará no processo cognitivo, na concepção de Wirt, “é próprio do símbolo o permanecer indefinidamente sugestivo: nele, cada um vê aquilo que sua potência visual lhe permite perceber. Faltando intuição, nada de profundo é percebido”. CHEVALIER, 1996. P.XXIII.
Por esse “algo mais”, o símbolo como nenhum (outro) signo consegue de maneira tão eficaz penetrar na mente humana. Ele possui um poder de persuasão que foi muito bem compreendido e utilizado pelos movimentos de massa, pelas ordens culturais, pelos movimentos religiosos, políticos, publicitários, entre outros. Porém o conceito de símbolo que interessa, como base à esta pesquisa é o que diz respeito à aproximação entre os dois mundos cósmicos que acompanham o homem desde os seus primórdios- o humano e o divino. O símbolo que liga o mundo visível ao mundo sobrenatural que é seguido de suas crenças, devoções e indagações. Esta é a ponte entre o consciente e o inconsciente para explicar o ‘inexplicável’ - revigora grandes conjuntos do imaginário, concepções que de certa forma não estão entre os aspectos materiais da vida.
1.2- Talismãs
O Homem sempre criou seus símbolos, para se comunicar com o seu semelhante e para explicar os fenômenos inexplicáveis, para isso, foram atribuídos conceitos abstratos às formas, figuras e seres da natureza. O registros dos símbolos mais remotos chegam até os dias atuais em sua representações nos desenhos, nas pinturas e nos artesanatos de cada povo, entre eles os talismãs e amuletos.
Os talismãs e os amuletos são símbolos de fé, crenças e superstições. A estes objetos são atribuídos poderes que realizam aspirações e desejos, são passivos de afastar as desgraças, e principalmente, ligam o Homem ao mundo espiritual.
“Assim, na procura da verdade, o homem vai criando símbolos e signos, e usando-os em seus tesouros de pedra, seus talismãs de ouro e bronze. Estes sinais referem-se a um diálogo muito antigo, o do homem e do universo, pelo caminho que leva à compreensão, a interrogação em todos os sentidos.” FARELLI;1977.Pg.15
Os talismãs são objetos feitos pelo Homem ou produzidos pela natureza, aos quais se atribui diversos poderes subjetivos que ultrapassam o ambiente físico e atingem um universo sobrenatural. O seu valor simbólico pode estar contido no seu ente natural como as conchas, insetos, alguns tipos de folhas, ou, no material em que é produzido como dentes, cabelos e os metais. Ou ainda, nas representações figurativas do talismã, como o sol, a lua, as estrelas, o circulo, a espiral as cruzes etc. Esses exemplos citados acima pertencem a uma classe de amuletos que envolve símbolos que chamados de universais, símbolos que se ligam às idéias e estão gravados no inconsciente coletivo da humanidade, para Yung são classificados por arquétipos:
“Os arquétipos manifestam-se como estruturas psíquicas quase universais, inatas ou herdadas, como uma espécie de consciência coletiva; exprimem-se através de símbolos específicos carregados de uma grande potência energética. Desempenham um papel motor e unificador considerável na evolução da humanidade” CHEVALIER;1992.Pg. XIX)
O que é comum na humanidade são as figuras enraizadas nessas estruturas constantes, universais e atemporais mas seu sentido pode variar conforme as épocas, as etnias e os indivíduos. Ou seja, além dos arquétipos universais, tem-se ainda expresso em cada talismã a simbologia provenientes das crenças culturais, das formulações dogmáticas religiosas e das organizações sociais. Ou seja, os símbolos devem ser interpretados no seu movimento em seu meio cultural.
É importante frisar que o símbolo só se torna verdadeiro quando sua significação vai além do significado objetivo, legível. Cada talismã tem sua história, uma força eterna, uma verdade, e muito de fé. Além de suas interpretações analógicas, sugere ainda o desconhecido, o místico, a simbologia individual do seu possuidor. O talismã se torna um símbolo na medida em que nunca será decodificado, totalmente compreensível, ele sempre será um objeto dividido em dois, que une e separa, expõe a dimensão humana para ocultar a dimensão divina que nunca será descoberta, se não pelo seu próprio talismã.
2- SINCRETISMO AFRO-BRASILEIRO
2.1- Os Negros no Brasil
Após o fracasso de submeter os aborígenes brasileiros à escravidão, devido a sua alta taxa de mortalidade, os negros vieram da África para suprir a necessidade da mão-de-obra escrava. A vinda de Africanos para o Brasil data do Sc. XVI.
As cifras relativas ao número de africanos que para aqui vieram não são precisas, mas estima-se que mais de 5 milhões tenham entrado no Brasil durante todo período colonial, e outros 5 milhões morreram antes de chegarem ao continente, ainda nos navios negreiros
A captura desses africanos, sempre de forma violenta, se fazia em qualquer região africana. Assim, grupos étnicos com culturas e línguas diferenciadas, aqui desembarcaram. Todas essas diversas etnias provenientes da África eram classificadas aqui, apenas por negros, como raça homogênea, diferenciados apenas pelos seus valores comerciais
São as seguintes as culturas negras vindas do ‘continente negro’: Culturas Sudanesas de religião politeísta; os povos Nagô (Iorubá) da Nigéria, Jejê ( Fon) de Daomé e Mina (Fant-Achant) da Costa do Ouro; Culturas Guineano-sudanesas islamizadas de religião monoteísta: os povos Fula, Mandinga e Haussá, no Brasil conhecidos por malês; Culturas Bantus de religião animista: representadas pelos povos de Angola, Congo e Moçambique, chamados genericamente de bantos
Havia uma política na comercialização desses escravos de misturar indivíduos de diversas procedências, a fim de evitar qualquer rebelião grupal. Povos com culturas e religiòes Essa coesão entre as diversas culturas nos “lotes” de negros foi a origem do primeiro sincretismo afro no Brasil, e que Waldemar Valente nomeou de “sincretismo intertribal” .
As posições hierárquicas das organizações africanas também foram ignoradas, pois era comum a presença de príncipes, princesas e rainhas sendo vendidos juntamente com seus ‘súditos’. É possível que esse fato tenha contribuído para a resistência das tradições africanas; pelo poder religioso de muitos líderes que continuaram a exercer sobre seu povo relações de respeito, adoração e obediência. Alguns desses governantes chegaram a alcançar status social nas irmandades religiosas na província. Como, por exemplo, a rainha-mãe da dinastia real de Aboney no Daomé, vendida como escrava no Maranhão, que teria fundado em São Luís a Casa das Minas, no início do Sc. XIX, e até hoje é considerado um dos centros mais respeitados da religiosidade africana no Brasil
Os negros-africanos não sofreram uma aculturação. Não houve, aqui, uma dominação cultural em nenhum dos lados, mas sim uma relação intercultural. A miscigenação não foi apenas biológica mas também cultural que ocorreu numa relação íntima entre brancos e negros.
2.2- A religião africana no Brasil (A Religião Africana no Brasil)
Toda a cultura brasileira é híbrida, centralizada na miscigenação, no fenômeno de fusão de culturas negro-africanas e luso-brasileiras. Destaca-se o sincretismo afro-cristão, ou simplesmente, sincretismo religioso como a mais importante manifestação da cultura afro- brasileira. A assimilação do catolicismo pelo fetichismo africano funcionou como uma poderosa “arma” contra a dominação cultural dos povos colonizadores. Arma essa, que os negros habilmente manejaram, como disfarce de suas tradições africanas:
“(...) os negros recebiam a religião cristã como uma espécie de anteparo por trás do qual escondiam ou disfarçavam coincidentemente os seus próprios conceitos religiosos. Adotaram imagens católicas e as cultuaram. Mas, na verdade, sob as invocações dos santos do catolicismo adoravam os representantes da divina corte africana. Assim despistaram a vigilância religiosa dos seus senhores. E mais do que isso: iludiram a ingenuidade dos padres na obra apostólica da catequese. Os negros se mostravam, aos seus senhores e aos missionários, convertidos à religião cristã. Na realidade, conservavam vivo o seu apegado fetichismo. (...)” (VALENTE, 1996. P 69)
O sincretismo religioso surgiu inicialmente como disfarce para os cultos africanos, mas com o tempo a associação entre santos católicos e fetiches africanos foram cada vez mais assimilados. Até os dias de hoje a manifestação sincrética é nítida nos santuários africanos, a integração de objetos africanos e católicos, e nas festas cristãs, principalmente na Bahia onde é constante a presença de adeptos de religiões africanas.
O africano encontrou no Brasil um clima tropical com extensas florestas, rios e cachoeiras, que muito se assemelhava à suas terras. Este fato torna compreensível como as religiões africanas encontram em solo brasileiro ambientes propícios para seus cultos à natureza e à seus elementos. Encontraram aqui vibrações necessárias na busca do Axé (energia vital).
O caráter opressivo dos senhores com os seus escravos, e o alto volume de trabalho diário estavam provocando fugas e algumas rebeliões. Para amenizar os problemas foi permitido o batuque , festas onde se dançava e se cantava e que já aconteciam clandestinamente. A permissão ao batuque, seguida da benevolência da Igreja em relação ao sincretismo, normalizou em certo sentido uma prática das religiões africanas. “Mais uma vez os atabaques rufam e os Deuses, felizes, dançam, dançam os mitos antigos, dançam o fogo e sua ira, dançam a frescura das cachoeiras cristalinas, dançam a onda que quebra na praias, dançam a criação do mundo.” LIGIÉRO;1999. p 10
Longe das senzalas, nos centros urbanos alguns negros conseguiam alforria, ou pelos esforços dos companheiros ou pela generosidade de seus senhores mais bondosos. A eles se juntaram mulatos e mulatas nascidos dos amores entre senhores e escravas e formavam-se então uma nova comunidade. Nessas comunidades, não havia necessariamente uma integração étnica, os negros se uniram pelas circunstâncias, que os levaram a lutar pela tradição africana e pela resistência da raça. Dessas comunidades organizaram-se centros religiosos autenticamente africanos. De novo o mundo sobrenatural e os Deuses africanos recebem homenagens de seus fiéis. De novo o mundo invisível que rege o homem chega a ser acessível.
2.3- O Candomblé
A palavra candomblé, vocábulo de origem banto que significa orar, saudar ou invocar. O termo se estende aos lugares onde as cerimônias africanas são realizadas. Os candomblés eram constituídos por ‘fiéis’ de várias etnias africanas, posteriormente algumas linhas religiosas foram se destacando como o '‘candomblé de caboclo’, hoje ubanda e os terreiros de religião ortodoxa iorubá, conhecidos atualmente por candomblé.
Numa definição sumária da religião dos iorubás, pode-se dizer que ela se apoia numa concepção monoteísta da divindade Olodumaré ou Olorum, o Ser Supremo, Deus inacessível . Não existe culto para a divindade suprema, para se comunicar com os Homens, criou os orixás. Os orixás governam e supervisionam o mundo, à eles foram destinados poderes sobre o controle das forças da natureza, tais como as águas, os ventos, os trovões dentre outros A seguir será apresentada uma descrição genérica das particularidades dos orixás mais conhecidos no Brasil, seu correspondente sincrético, seus domínios, seus fetiches e seus símbolos.
EXU- Corresponde à S. Bartolomeu; domina as aberturas, ruas e encruzilhadas. O seu fetiche é, em geral, um boneco de barro preto, quase sempre armado de tridente ou de sete espadas, boca rasgada de canto à canto, e olhos incrustados com búzios, cuja a função mágica nos xangôs (terreiros) é poderosa. É simbolizado por um montículo de terra no qual estão fincados ferros, lanças e tridentes.
XANGÔ- Corresponde à S. Jerônimo; é o orixá dos raios, trovões e tempestades. É um dos mais poderosos e atuantes dos orixás, seu nome tomou sentido mais amplo e passou a significar o próprio terreiro. Seu fetiche natural é a ‘pedra de raio’ também chamada de itá ou otá, é simbolizado pelo Oxê, machado de dois gumes.
OGUM- Corresponde à Santo Antônio (Bahia) e à S. Jorge (Rio de Janeiro). É a divindade dos ferreiros, dos guerreiros, dos agricultores e de todos que trabalham com o ferro. É simbolizado por um molho de ferramentas de ferro para a luta e o trabalho em número de 7, 14 ou 21.
OXÓSSI- Corresponde à São Jorge (Bahia) e à São Sebastião (Rio de Janeiro).Mais conhecido por Odé, é o senhor das matas, é caçador incansável e protetor dos animais. Seu símbolo é um arco atravessado por uma flecha e o erukerê, espécie de espanador feitos com rabo de boi.
OMULU- Corresponde na Bahia ora com S. Roque, ora com S. Lázaro, ora ainda com S. Bento. Conhecido também por Obaluaiê, é a divindade da varíola e por extensão das doenças em geral. Seu símbolo é o xarará, um pequeno mastro todo enfeitado de búzios.
ORIXALÁ- Corresponde ao Senhor do Bonfim e a Jesus Cristo. Conhecido também por Oxalá, é considerado o maior dos orixás. Ele é o pai, criou todos os homens e gerou muitos orixás. É simbolizado pelo paxoró, e tem como fetiches o anel de chumbo e búzios.
Os orixás femininos mais importantes são: Oxum, Iemanjá, Iansã e Nanã.
OXUM- Corresponde à Nossa senhora dos Prazeres. É a divindades das águas doces, feminina e muito vaidosa, é protetora das questões da mulher como a menstruação e a gravidez. Seu fetiche é uma pedra de rio e seus símbolos são leques (abebés) e as pulseiras de metal (idés).
IEMANJÁ- Corresponde à Nossa Senhora, a Mãe de Deus. É a rainha das águas do mar, e é tida como a grande mãe, generosa e superprotetora, por isso sua associação à Nossa Senhora. O seu fetiche é uma pedra ou concha marinha. Tem como símbolos também os leques, sabonetes, perfumes, colares e pentes. Seu símbolo é um leque que tem no meio o recorte de uma sereia chamado de abebé.
IANSÃ- Corresponde à Santa Bárbara. Também conhecida por Oiá, é o orixá dos ventos e tempestades e protetor dos relâmpagos. Seu fetiche é o corisco, e seus símbolos são a alcanje e o eruexim
NANÃ- Corresponde à Sant’Ana. Orixás dos mortos, da água parada das lagoas e da chuva fina que faz lama. Nanã simboliza o poder controlador das mulheres idosas, a autoridade das avós. É simbolizada pelo ebiri, também chamada ‘vassoura de Nanã’.
Os símbolos de cada orixá, são chamados de emblemas ou ferramentas. São objetos usados nas cerimônias, nas danças e mímicas de louvor à entidade. Esses objetos foram feitos em diversos materiais, sendo preferencialmente em ferro, e faziam parte do universo do candomblé. Aos poucos eles saíram dos terreiros, e se constituíram em amuletos pessoais, símbolos de devoções à seus orixás. Sua função passava a ser a de distintivo individual, bem diferentes dos rituais coletivos do candomblé. Esse aspecto será visto de forma mais abrangente no capítulo destinado aso balangandãs, mas suas representações são mostradas à seguir nos desenhos de Carybé. (Fig. 1)
Devido ao crescimento e expansão dos terreiros de Candomblé, necessitou-se de uma mão-de-obra especializada na produção dos objetos de culto, que estariam nas cerimônias públicas e privadas dos candomblés. Os artesão destinados à essa atividade receberam o nome de ‘ferramenteiros’ ou ‘ferramenteiros de santos’. Destes objetos encontram-se os emblemas dos orixás, as figas, bolas de louça, encastoamentos de dentes humanos e de animais, e outros objetos que ficavam expostos nos ‘pejis’(santuários).Os ferramenteiros também produziam os objetos corporais rituais-religiosos, os ibós e idés (pulseiras), copos (punhos) e braçadeiras e outros que faziam parte da ‘indumentária’ dos iniciados nas cerimônias (Fig. 2). Estavam presentes principalmente nos corpos femininos nas manifestações ritualísticas, onde cada objeto, cada adereço funcionavam como distintivos, identificações de cada categoria divina, orixás da terra, das águas, do mato, da água doce etc.
Da joalheria religiosa afro-brasileira algumas saíram dos cultos religiosos e se proliferaram entre os africanos da província, tais como, os punhos, também conhecido por ‘pulseira- escrava’, os colares de contas coloridas, onde suas cores simbolizam seus orixás reverenciados e os colares de contas enfeitadas com filigranas, juntamente com os amuletos isolados, ou em molhos. Os amuletos, amplamente difundidos, constavam de miniaturas de objetos ‘mágicos e emblemas dos orixás, eram usados em fios de contas, braceletes, colares de argolas, anéis. Os amuletos de significado ritualístico e religioso penetrou no cotidiano do negro africano como distintivo de sua origem, símbolos de suas crenças e devoções.
De todas as jóias usadas pelas negras e crioulas destaca-se a de “penca de Balangandãs”, peça revestida de enorme mistério e grande superstição, sua originalidade e expressividade é o tema central desse trabalho, e que veremos à seguir.
3- PENCA DE BALANGANDÃS
3.1- Pequeno histórico
A penca de balangandãs é o nome dado à jóia na qual se agrupam diversos amuletos, balangandãs, e são usadas um pouco abaixo da cintura ( Fig. 3), “área de forte significado ritual religioso por ser zona que marca a fertilidade -, sendo que alguns conjuntos bem próximo ao baixo ventre ou mesmo tocando este.”LODY,1988. Pg25. A parte onde são presos os amuletos chamamos de “nave”, “galera” ou “chave”, por vezes decoradas com motivos de pássaros e flores que simbolizam as forças da natureza presentes entre os fiéis; o pequeno parafuso que fecha a chave recebe o nome de “borboleta” devido a sua forma, como se fosse duas asinhas; a corrente onde é presa a penca denomina-se “correntão” ou “grilhão”( Fig. 4).
As pencas ou o molho de amuletos esteve originalmente no universo dos cultos religiosos africanos, juntamente com outros objetos compunham os santuários dos terreiro de candomblé, e representa Ogum. Foi na joalheria popular, porém, que o molho de amuletos se propagou como adorno pessoal e teve a denominação de Pencas de Balangandãs. Essa peça fazia parte de um universo exclusivamente feminino, e foi primeiramente identificada nos trajes das negras do “ganho” em praças públicas em Salvador no século XIX.
“As pencas de balangandãs, nos trajes femininos na Bahia e os amuletos, isolados ou em molhos, também nas cinturas, documentados por Debret e Carlos Julião, marcaram sem dúvida, um momento da história cultural do Homem africano no Brasil, quando novamente o candomblé, enquanto pólo da memória arcaica e da memória viva, somente reafirma essas qualidades de resistência, tanto no plano material como espiritual”LODY,1988. Pp20
Além do ‘ganho de comidas’, as mulheres vendiam utensílios de cozinha, aviamentos, “objetos mágicos” e outros. As vestimentas próprias dessas mercadoras negras ficaram conhecidas como “trajes de crioula”, projetadas na indumentária das ‘vendedeiras’ portuguesas do Sc. XVIII . Pouca coisa mudou na roupa das baianas, já que muito se assemelham às baianas de acarajé espalhadas hoje por todo o Brasil.
As negras do ganho acrescentaram um elemento novo e diferenciador ao vestuário- a Penca de Balangandãs. Provavelmente estas peças tenham surgido da necessidade da negra em se proteger. Contra o mau-olhado, como forma de evocar o lucro material, agradecer uma benção, a negra buscou na forma de Ogum um distintivo próprio de sua condição de mercadora. Nos balangandãs estavam representados figuras como os ex-votos, figas, bolas de louça, saquinhos de couro, dentes de animais, objetos provenientes dos cultos africanos, que, somados às medalhinhas de santos e diversos tipos de crucifixo consagrou parte de sua história sintetizando as crenças e cismas da África e todo seu imaginário com os santos e símbolos da Igreja Católica.
A penca de balangandãs proporcionou a propagação de toda uma estética afro- brasileira, fazendo com que o costume da negra se ‘enfeitar’ penetrasse nas famílias tradicionais onde negras e crioulas escravas eram adornadas com jóias de alto valor comercial e enorme superstição. Esse momento marcou o apogeu do uso de pencas no Brasil, por meio do “traje de Beca” quando escravas exibiam peças valiosas durante as suntuosas e monumentais procissões religiosas como o “corpus Cristi”, ou nas festas das irmandades próprias dos negros no recôncavo baiano, principalmente na cidade de Cachoeira . Os senhores portugueses vestiam suas escravas com jóias valiosas como forma de demonstrar seu poder e sua riqueza. Diz a tradição que a chave do argolão onde se prendiam os balangandãs ficava de posse do senhor, evitando o roubo dos amuletos valiosos. Diz também, que, alguns dos amuletos eram de propriedade das que ganhavam de seus senhores em troca de favores sexuais, e na maioria das vezes eram vendidas para alforria das próprias ou para as ‘caixas de alforria’- fundos comuns para a libertação dos escravos -. Para os senhores portugueses as jóias usadas pelas crioulas tinham exclusivamente o valor material, desconhecendo que por meio desses verdadeiros símbolos as escravas exibiam parte de sua história, sua experiência devota, o pagamento de uma promessa e principalmente os signos que unia o cotidiano negro à memória da “Mãe África”.
3.2- A Simbologia das Pencas de Balangandãs
A penca de balangandãs é, sem dúvida, a jóia mais representativa da história brasileira e um dos mais significativos ícones criados pela cultura afro-brasileira na Bahia. Essa peça de grande beleza, para muitos, é tida apenas como uma jóia comum às negras, com certo mistério sim, mas uma crença popular, mero folclore. Realmente a penca de balangandã não é de fácil compreensão. Essa peça tem uma intrigante rede de códigos, constituída por vários símbolos (amuletos) que interagem ativamente constituindo uma linguagem única e pessoal. O conteúdo simbólico desse signo é interpretado dentro de uma estética particular, por uma leitura por meio da tradição religiosa dos povos africanos, dos seus mitos, crenças e superstições
“Os balangandãs da Bahia seriam, assim, uma representação simbólica dessa velhíssima tradição do conhecimento humano e divino acumulado e esquecido: o temor do Deus onipotente pelo conhecimento de suas forças fecundantes de luz & sombra, sol & lua, terra & água, ar & fogo, homem & mulher. Braços propiciatórios e mortais, todos eles a embalar um ser de eleição terrestre: aquele feito a semelhança e imagem de Deus. Mãos diferenciadas e unas do mesmo corpo cósmico. E místico. Tudo revelado (e encoberto) pelas três palavras profanas que escondem a grande unidade tripartida: Uma Coisa Só.” HOMEM, Homem, prefácio do livro “Ourivesaria Baiana”. MACHADO. 1993
Sabe-se que o adorno corporal é usado desde as eras mais remotas por todos os povos e civilizações. Por vezes produzidos com os recursos naturais como dentes, peles e semente na fabricação de pulseiras, colares, brincos dentre outros. Com a descoberta dos recursos minerais por algumas civilizações, os adornos passam a ser executados em metais, o ouro e a prata principalmente. O conjunto dessas peças feitas em metal e gemas passaram a ser denominadas por jóias.
Sabe-se, porém, que tanto os adornos de chifres, peles, sementes e outros feitos pelos aborígenes brasileiros e as jóias de ouro e pedras preciosas dos povos bárbaros, por exemplo, não podem estar inseridos no contexto atual, mercadológico e impessoal do termo ‘jóia’. As primeiras peças corporais tinham uma conotação cultural, religiosa e ritualística. Não eram exatamente, ou tão somente, um enfeite ou decoração, consistiam em de um verdadeiro elo entre o humano e o divino, símbolo de comunicação entre o natural e o sobrenatural. Dentre esses adereços de funções religiosas há algumas que chamamos de ‘talismãs’ .
A penca de balangandãs, pode ser chamada de uma ‘jóia talismânica’, criada no cerne do candomblé e usada pelas negras e crioulas como amuletos de seus orixás e proteção contra os infortúnios e malefícios da vida. “Tudo que dirige sobre nós uma influência desejável, tudo que afasta de nós uma influência maléfica ou de magia negra é um talismã” . O que faz dessa peça um talismã único é o fato de não ser presenciada em nenhum outro lugar que não o Brasil, em nenhuma outra cultura que não a Afro-brasileira. É um símbolo do sincretismo religioso que se expressa na composição de amuletos com signos referentes à África, seu imaginário, credencies e superstições, com os ícones de fé da religião católica, seus santos, festas e liturgias, impostos pelos colonizadores portugueses.
Além do simbolismo expresso na composição dos amuletos, observa-se também referências simbólicas relacionados à própria estrutura da peça. A forma, os materiais utilizados, a etimologia, as técnicas de execução, tudo nele tem relação funcional, essa é uma especificidade do talismã, nada nele é por acaso, a presença do místico, mágico e divino são sempre uma constante.
A penca de balangandãs foi através dos tempos de luta e sofrimento, absorvendo valores cada vez mais particulares à vida do negro. Tem-se, por meio das pencas algumas referências simbólicas factíveis de interpretação, pois, seria impossível relatar a amplitude de sua simbologia, pois elas são múltiplas e individuais. Uma leitura que poderia ser a original, está inserida no contexto religioso, um ‘atributo’ à seus deuses: “a penca simboliza Ogum, deus-guerreiro, que é representado tanto na África como no Brasil por um molho de pequenas miniaturas de ferramentas para luta e o trabalho registradas primeiramente nos candomblés e depois na joalheria popular” . Uma outra interpretação, ainda de cunho religioso mas que recebe por meio de metáforas referência de sua condição de escravo: “Exu é representado pela corrente, símbolo de escravidão. Iemanjá é representada pela galera, símbolo de união para os diversos filhos da água” - “Balangandãs e Figas da Bahia” FARELLI; 1971. p.27
E no que diz respeito à nomenclatura das peças que compõem a penca, vê-se na sua etimologia a dor humana: esse conjunto dotado de simbolismo teve como nomeações para sua peças referências da gíria usada nos navios negreiros e nos artefatos de tortura. Nomes como “nave”, “galera”, “correntão” e “grilhão” são objetos carregados de dor e sofrimento causado pela crueldade dos brancos nas embarcações na rota África-Brasil. Os signos dessa dor sublimada pelos artificies da ourivesaria baiana em delicadas peças de enorme encantamento e mistério. Peças essas que simbolizam a sobrevivência da tradição africana, a consciência de sua condição de escravo e a resistência de sua identidade cultural.
Enfim, todo o conjunto de balangandãs é dotado de um poder mágico, que não se remete a nada que se conhece completamente. Trava um diálogo próprio e intransferível entre seu possuidor e as forças divinas. Não se trata apenas de uma jóia, ou um adorno, se trata de um legítimo talismã, talvez o mais significativo da história brasileira Onde o sincretismo foi traduzido na inter-relação dos amuletos: de origem africana como dentes, chifres, figas, chaves e moedas interagindo com às medalhinhas, crucifixos e outros símbolos cristãos. Como tudo no sincretismo afro-brasileiro é resultante da miscigenação, os valores religiosos dos colonizadores foram pelos negros absorvidos e relidos pela funcionalidade mágica, adquirindo outras potencialidades e interpretação social, e consequentemente, novos valores simbólicos.
3.3- Balangandãs
Hoje decodificar os balangandãs é uma tarefa quase arqueológica, seu significado calcado no processo afro-católico se propagou por via da tradição oral, o que resultou, hoje, na carência de documentos. Sobre este tema, um dos poucos estudos etnográfico existente é o de Raul Lody no seu livro Pencas de Balangandãs da Bahia onde o autor cita um raro artigo de Afrânio Peixoto de 1945, sobre os balangandãs de conteúdo devocional:
“(...) a pomba ou os santos mártires ou todos os santos, como o galo, também representando a vigilância, a pomba do Espírito Santo, de asas abertas e cruz feita com a cabeça e cauda. São Jorge ou Oxocê, santo guerreiro e caçador, é representado pela lua, pela espada, pelo cão e pelo veado. São Jerônimo ou Xangô se representa pelo burro, pelo carneiro, pelo caju, o abacaxi e o milho. Santo Antônio ou Ogum pela faca, pelo porco. São Lázaro ou Omulu é representado pelo cão ou a fidelidade, e, às vazes, também pelo porco. São Cosme e São Damião se representam pela moringa d’água. Santo Isidoro ou Omulu moço (São Lázaro) contenta-se com o boi. São Bartolomeu no culto “cabloco” tem o sol. Sant’Ana, ou a mestra da Virgem, Nanã, tem por símbolo a palmatória. Nossa Senhora da Conceição ou Oxum fica com as uvas.(...)”LODY, 1988.p.28
Assim como no artigo de Afrânio Peixoto que não aprofunda as questões sobre a escolha dos signos para a representação dos orixás do candomblé e santos católicos, outros autores também só traçam um paralelismo simbólico entre o ícone, os santos católicos e os deuses africanos.
É importante analisar o amuleto nos seus aspectos de composição. Aspectos como, o material empregado na sua fabricação, suas cores, sua manufatura esses elementos podem fornecer muitas vezes possibilidades de vias de representação na sua leitura simbólica.
Os negros malês que já conheciam na África as propriedades e o manuseio dos metais, introduziram no Brasil as técnicas de fundição de metais nas pencas e nos balangandãs. O metal era trabalhado dentro dos moldes tradicionais, como em qualquer outro trabalho de ourivesaria: A fundição segue o mesmo processo do bronze, coando o metal incandescente no vazio da forma de argila; o alto e baixo relevo era obtido batendo o martelo e usando punções, a gravação é feita com o cinzel; a filigrana é obtida com o entrelaçamento de fios de prata. Os amuletos não eram elementos exclusivos das pencas, eles estavam presentes nos broches, nos colares, nas pulseiras e nos Kelês.
As peças de metal trazem um conteúdo forte por simbolizar Ogum - O artesão divino que domina todos os metais. Existe uma relação profunda entre o artesão dessas peças com o orixá ferreiro, patrono dos ofícios ligados ao ferro. As habilidades manuais, a técnica, a agricultura e a guerra estão sob seu domínio, pois com o mesmo ferro se faz esculturas, máquinas e armas de fogo e diferentes ferramentas úteis para a sobrevivência. De um modo geral Ogum trabalha na frente, começando coisas novas, simboliza a energia indomável, capaz de gerar forças para nos fazer superar os mais difíceis obstáculos. Ogum permanece na memória popular como o orixà vigilante, que com ferocidade e bravura oferece armas que defenderão a manutenção do poder dos reis e sacerdotes.
Outros materiais, além dos metais, se misturavam nas pencas como as gemas coloridas, dentes e chifres de animais, cabelos humanos, diferentes tipos de madeira, chifres de besouro, esporões de galo e outros. Signos representativos do imaginário africano e que de certa forma pertencem às estruturas psíquicas universais defendidas por Yung, e são encontradas com diversas simbologias, de acordo com a época, local e cultura.
É comum deparar-se com figuras que contenham mais de um significado, e simbolismos expressados por mais de um significante. Segundo Chevalier às vezes é possível se ter mais de uma interpretação de um símbolo, a leitura simbólica por vezes extrapola sua representação, “Um só significante induz-nos ao conhecimento de mais de um significado; ou, para simplificar, o significado é mais abundante que o significante” CHEVALIER;1992. P XXIV
Para uma melhor análise sobre a simbologia das figuras dos balangandãs eles podem ser classificados em quatro grupos: devocionais, votivos, evocativos e propiciatórios;
Devocionais: são os que revelam que seu possuidor tem uma determinada devoção. São ícones que revelam a divindade devotada como os relicários com medalhas de santos ou santas, as ferramentas e emblemas dos os orixás como a espada, que se remete à São Jorge, ou ainda símbolos próprias dos santos devotos, tais como, a pombinha, representando Espírito Santo; cruzes e crucifícios e por aí em diante
Votivos- são os que representam uma graça alcançada, podendo mesmo serem chamados de “ex-votos”. Sua representação consta de cabeças, troncos, braços, pernas, pés e outras partes do corpo registrando a ação do milagre e devolvendo ao santo a cura em forma de agradecimento material. Hoje os ex-votos são confeccionas em madeira, cera, gesso, barro e são depositadas nos altares de oferendas, cuja finalidade continua sendo o pagamento de uma graça alcançada por intermédio divino. A arte ex-votiva é a representação do imaginário afro-brasileiro, e tem nexo e reflexo nas máscaras antropomorfas e zoomórfas dos negros africanos. “Talvez a força plástica e simbólica das máscaras tenha encontrado nas esculturas ex-votivas um canal de expressão e de comunicação ritual, religiosa e social” LODY,1988. P15. Assim como na África, no Brasil os ícones de partes do corpo humano valorizam-se simbolicamente numa relação individual, ou seja, na relação entre o devoto e a divindade.
Evocativos- são os que lembram um acontecimento alegre, simbolizam uma recordação distante. O cacho de uvas, além de simbolizar a fartura lembra ainda, com os barris e as garrafinhas, as festas da vindima, de origem portuguesa; o pandeiro simbolizando o culto caboclo; o tambor , que embora na África fosse instrumento de guerra, é no Brasil instrumento musical, marcando o ritmo dos candomblés e simboliza as festas ritualísticas nos candomblés.
Propiciatórios- são os que propiciam boa sorte, a fortuna, a felicidade e o amor. Apresentam-se como pequenos barris de água, encastoadas em prata, contra o mau olhado; figas diversas; dentes de jacaré ,boa dentição; as moedas, fortuna; os bastões ocos em prata onde pós misteriosos eram escondidos como pó de pemba (giz) , manjericão, terra de cemitérios entre outros; o caju e o cacho de uvas eram propiciatórios da fartura à mesa e alívio nas amarguras da vida; a romã que simboliza a fecundidade; o abacaxi era indicado para proteger das doenças do peito; as espada simbolizava S. Jorge, Ogum, protetor das pessoas que andam pelo mato.
Sem dúvida, a classe de balangandãs que teve seu conteúdo mais popularmente difundido foram os propiciatórios. Esse símbolos ‘sagrados’ devidamente preparados (rezados) funcionam como seguranças para seu possuidor. Vejamos mais alguns destes. Amuletos:
A aranha simboliza a tentação; o corcunda- o bom augúrio; o signo-de-salomão- a boa sorte; o cágado e o jabuti proporcionam muitos anos de vida; o caju e os cachos de uvas são atraentes de fartura; o abacaxi cura as doenças do peito; a espada sempre simbolizando a defesa; a româ e a meia lua simbolizam a fecundidade; o trevo, a felicidade conjugal; o galo, a vigilância; o caranguejo, a fidelidade; a ferradura, a felicidade; o coração, a paixão; as mãos dadas, a amizade; o caranguejo, a felicidade; a figa, proteção contra o mau olhado, e tantos outros.
Mesmo não sendo comum às pencas, vale a pena destacar o Patuá, amuleto propiciatório tão cantado pelos artistas baianos, e que traz em si a necessidade antiga de levar junto ao corpo recipientes contendo objetos sagrados. Esses objetos nasceram da necessidade de se proteger contra as forças do mal, dos enigmas das trevas, do demônio. Na Idade Média, surgiram as relíquias como, fios de cabelo, dentes humanos, fragmentos de hábitos qualquer coisa que tivesse sido tocada pelas as mãos do emissário de Deus, depositados em relicários, estes, bentos e ungidos por água, orações e outros rituais. O fiel ao (usá-lo) usa-lo junto ao corpo estaria protegido contra o maior dos inimigos, o demônio, tão valorizado pela igreja católica e temido por todos.
Na África, esses recipientes foram chamados de patuás. Os patuás são pequenas bolsas em couro, nas quais estavam contidos verdadeiras porções ‘mágicas’: ervas, pós misteriosos, raízes excêntricas misturados à elementos que simbolizavam os orixás.
“Um dos patuás mais antigos dos africanos era feito desta maneira: uma conta de santo que a pessoa tem como protetor, um pedaço de erva chamada de mil homens, um dente de alho, uma raiz de dandá. Tudo isso devia ser colocado numa bolsinha de couro e levada ao pescoço. Segundo os sacerdotes nagôs este patuá cortava qualquer feitiço” FARELLI, 1981. P. 51
Os patuás baianos sãosaquinhos de couro contendo materiais de axé- mistério africano- , pós, raízes, folhas, sangue e outros. Um elemento interessante depositado nesses saquinhos eram algumas “suratas” do Alcorão introduzidos pelos negros malês da Bahia e que eram acrescidos de sangue de carneiros, certas ervas, búzios, raízes, folhas, pós de cemitérios que funcionavam como protetores do corpo, do trabalho, das coisas do amor, sendo os precursores dos atuais patuás da Bahia.
A mitologia africana e os símbolos desses povos não foram incluídos nas obras referenciais de Carl G. Yung, mas usando a sua definição sobre o tema exposto em seu livro “O Homem e seus Símbolos” pode-se dizer que todos esses amuletos funcionam como arquétipos, “imagens psíquicas reveladoras de informações contidas no inconsciente coletivo, que, por sua vez, armazena experiências e conhecimentos que pertencem a toda a humanidade, desde passados imemoriais,” LIGIÉRO, 1999. p 49
De todos esses amuletos pertencentes à penca de balangandãs, um dos mais interessantes, e sobretudo mais divulgado é a figa, esse amuleto trazido da África e que hoje se constitui em um símbolo verdadeiro da cultura afro-brasileira.
3.4-Figas
A figa é com certeza o amuleto mais tradicional do povo brasileiro. Todos os brasileiros sabem das superstições que rondam este objeto. Devido ao seu significado de ‘proteção’, ela é usada por católicos , adeptos do candomblé, por simpatizantes, ou mesmo por curiosos.
Sua origem, ao contrário que muitos pensam, não é brasileira. A figa é na verdade o símbolo da fertilidade, sua crença provém dos velhos cultos fálicos da Ásia e África.
“As primeiras figas, provavelmente, foram feitas do tronco da figueira, árvore nativa das regiões áridas da Ásia, da África do Norte e da Europa circumediterrânea. Entre os caldeus e cananeus, a figueira era tida como símbolo da vida e de fecundidade, como se pode ver na parábola da figueira estéril, do Evangelho, amaldiçoada por Jesus. E ainda como sinal de proteção: é da figueira que Adão e Eva recolhem folhas para recobrir sua nudez.” FARELLI, 1981. Pg 40
No Brasil, a figa esteve primeiramente presente nos cultos religiosos africanos, depois, saiu dos terreiros integrando-se ao costume e ao imaginário de todo um povo. Existem alguns tipos de figas, a mais comum e tradicional é conhecida como a figa fálica (Fig. 6), configurada na mão fechada e tem o polegar entre o indicador e o médio, simboliza a reprodução: “(...)representando assim o poder do sexo, no qual o dedo polegar simboliza o órgão viril e o indicador e o médio configuram os grandes lábios do órgão feminino.” . Um outro tipo de figa é a figa cornuda (fig. 7), esta é representada pelos dedos mínimo e indicador paralelos e os demais encolhidos serve para afastar os malefícios. “Esta figa representa a cabeça de boi ou de vaca com os dois cornos (...) pois na antiga acepção, a força do touro estava simbolizada nos chifres” . Aqui no Brasil essa figa é acompanhada do termo isola, e serve para espantar as coisas más, e livrar dos maus olhados.
Guardar as figas junto ao dinheiro, faz aumenta-lo; quando a figa se quebra, por queda, ou mesmo se rachar por si só, é indício que o agouro pegou nela. Essas são algumas das superstições e crendices que existem a cerca desse objeto. Tem-se ainda a figa como símbolo emblemático dos orixás africanos, tais como, a figa marombá (Fig. 8),que simboliza Oxalá, a figa de Omolu (Fig. 9), pais dos pobres, simboliza fartura e poder e a figa de Xangô (Fig. 10) que simboliza o poder de abrir e fechar qualquer trabalho.
As figas eram confeccionadas preferencialmente em madeiras escuras como arruda, jacarandá e guiné, porém outros materiais eram empregados na sua feitura, ouro, prata, chifre, marfim, e gemas coloridas como jade, cornalina, coral rosa e vermelho e ágatas de todas as cores. A cor inclusive era o elemento diferenciador na representação desses objetos e nas suas funções. No candomblé baiano, onde o sincretismo religioso é uma constante, a coloração das figas tem um significado especial, além dos atributos propiciatórios, também simbolizam um santo católico e seu orixá correspondente, vejamos algumas delas :
As amarelas- Oxum, Nossa Senhora da Conceição; propicia a volta da memória
As azuis - Iemanjá, Nossa Senhora e simboliza limpeza e alegria e são utilizadas para aclarar idéias e trazer contentamento
As verdes- Oxóssi, São Jorge, simboliza esperança e transmite confiança para as pessoas aflitas
As pretas- Omulu, São Lázaro; símbolo de dor, protege contra as doenças e sofrimentos da vida; representa também Exu, São Bartolomeu, livra dos maus-olhados e simboliza o poder do sexo.
As vermelhas- Xangô, Santo Antônio, símbolo do fogo e do amor, transfere calor e vida para os seres e protege contra os efeitos do trovão.
As brancas- Oxalá, Nosso Senhor do Bonfim, símbolo de pureza e de paz, serve para purificar e apaziguar os ânimos.
As douradas, ou de ouro- Oxum-Maré, Nossa Senhora das Candeias
As azuis- Ogum, Santo Antônio, símbolo de revolta, livra das intrigas e ajuda nas lutas e combates da vida.
A cor- de-rosa- Nanã, Sant’Ana, simboliza serenidade e trás calma e tranqüilidade para as pessoas, e faz recordar um fato agradável.
Tem-se ainda as feitas com coral, que representam Iansã (Santa Bárbara), simbolizam atenção, defendem contra os raios e tempestades, evitam desgraças, secam o sangue das feridas e atraem amores, as pretas de azeviche ( tipo de carvão fóssil) atuam contra a inveja.
Algumas figas são bem curiosas quando enfeitadas com pequenos ornamentos feitos à moda dos negros, são unhas pintadas, punhos e dedos ornados com pulseiras, pencas e anéis (Fig. 11). As figas estavam presentes na pencas de balangandãs, nos colares de contas, correntes, pulseiras, nas guias, e eram encastoadas em prata, ouro e alpaca.
A figa é um dos símbolos mais representativos da estética afro-brasileira e até hoje permanece com seu simbolismo guarnecido de cismas e crendices trazidos da misteriosa África. Cortando a inveja, abrindo caminhos, a figa mostra que a crença do povo africano é forte. Esse povo que enfrentou a humilhação, o desprezo e a crueldade de punhos fortes, de punhos fechados e punhos duros como os das suas figas.
Para os brasileiros, a figa simboliza a força de uma tradição centrada nas crenças negras, era, e é muito comum nos batizados católicos os padrinhos e madrinhas presentearem seu afilhados com correntinhas e pulseirinhas com figuinhas, que quando postas na criança agem contra o mau-olhado e o quebranto. Para os turistas que para aqui vêm, são produzidas industrialmente milhares de figas, de plástico ou metal banhado. Pouco desses milhares de estrangeiros que visitam esse país, sabem dos verdadeiros atributos dessa peça. Contudo, a figa se tornou, no mundo inteiro, um símbolo da resistência negra nesse país, um símbolo do Brasil.
VI- CONCLUSÃO
A contribuição artística do Negro ao acervo cultural e artístico brasileiro é incontestável. No Sc. XVI, africanos de várias etnias se misturavam entre os aprendizes nas corporações de ofícios. As corporações de ourives trabalhavam nos objetos litúrgicos destinados aos suntuosos cultos da “Santa Igreja Católica. Posteriormente, para suprir a alta demanda por objetos profanos, peças decorativas para residências e palácios senhoriais como farinheiras, castiçais, os paliteiros dentre outros, vieram para o Brasil renomados ourives de Portugal, principalmente de Lisboa e Porto. Os mestres portugueses agregaram auxiliares que muitas vezes eram constituídos por negros, forros e alugados. Os oficiais portugueses fizeram discípulos, suas oficinas transformaram-se em escolas, e delas nasceram os prateiros brasileiros que aos poucos foram se tornando os melhores do Reino. Fato que desembocou na hegemonia negra e parda na ourivesaria dos séculos XVIII e XIX.
No Sc. XIX, auge da joalheria baiana, muitos dos mulatos de Salvador, que já aprendera com seus mestres os processos de confecção das jóias, trabalhavam também nas obrigações dos candomblés. Contribuíam com suas habilidades na manutenção de uma tradição, servis à sua religião. Fabricavam os amuletos, patuás, ex-votos e outras jóias cheias de encantamento que compõe esta joalheria, símbolos verdadeiros de uma cultura, com significados perpetuados e respeitados até os dias de hoje.
Esses objetos, hoje, são produzidas em larga escala, os patuás são produzidos em plástico imitando couro e recebem cores conforme os orixás, amarelo para Oxum, azul para Oxóssi, branca para Oxalá, e assim sucessivamente; as figas são produzidas em vários materiais, sobressaindo as de plástico negro; os balangandãs são miniaturas dos amuletos e estão em pequenas pencas, broches e pulseiras. Esses objetos são vistos como lembranças da Bahia, vendidas aos milhares para turistas de todo o mundo que vão à Salvador, envolvidos pela cultura mística e religiosa do povo baiano. Essas peças com significados tão ricos e tão representativos de nossa cultura, com o passar do tempo e com a massificação, receberam o genericamente o conceito de símbolo do ‘Brasil Negro’, provenientes da magia e crendices dos baianos. Porém, as simbologias próprias de cada uma dessas delicadas jóias, produzidas pelos artificies negros nos casarões do Pelourinho, se perderam. Seus significados que iam além de seus ícones, chega ao mundo contemporâneo como referências históricas, suas funções religiosas como ‘crendices populares’, e sua magia como curiosidades, autêntico folclore brasileiro. Folclore ou arte, as jóias baiana, do SC. XIX, constitui um testemunho de nossa história, peça estrutural do patrimônio cultural e artístico do Brasil.
Esse trabalho tem como objetivo a reflexão a cerca das funções primordiais das jóias. Infelizmente o mundo industrializado que vivemos a descaracterizou como manifestação simbólica e artística produzida por um grupo. Hoje ela simboliza na maioria das vezes, apenas o poder econômico e social do seu possuidor. Por outro lado, é incontestável o valor artístico das joalherias, egípcias, pré-colombianas, e mesmo dos adornos corporais dos aborígenes. A joalheria é, na sua essência , criadora e propagadora de símbolos, fonte de expressividade individual e cultural, elo de ligação entre o humano e o sobrenatural. A jóia, quando inserida nesses valores essenciais, se transforma em uma linguagem, um canal próprio de criação e de propagação de saberes. A joalheria é uma importante fonte de estudos para áreas afins como a antropologia, a sociologia, os estudos da religião e a arte. Mas sua linguagem deve ser analisada e interpretada pelos estudiosos da joalheria, e são para estes que dedico esses trabalho.
Como já dito anteriormente, essa monografia aproveita esse clamor pela descoberta de nossas raízes para evidenciar esse período em que o Negro registrou aqui suas tradições e seus saberes nessa arte que é a Joalheria. Arte essa que não tem merecido muita atenção entre os divulgadores de Arte???. Para que a joalheria, hoje, volte a ser incluída ao universo artístico, é necessário que os joalheiros e os designers, volte o olhar para as jóias autênticas, retirando delas os verdadeiros ensinamentos sobre o quão importante ela é para a história da humanidade, e sobre as suas reais propriedades que as tornam verdadeiros capítulos do ‘livro das artes’. fontes de pesquisa e referenciais para novos trabalhos.
No momento atual o termo ‘multiculturalidade’, seguido de seus conceitos, se tornou um tendência em várias áreas do saber, e também se faz presente no panorama internacional do design de jóias. Na joalheria essa tendência tem como referência os estudos sobre a “joalheria étnica” . A possível contribuição desse trabalho para a área da joalheria, é a de mostrar as possibilidades de pesquisa e de referências criativas nas jóias produzidas em solo brasileiro, sendo esses os principais instrumentos na busca da identidade cultural na joalheria brasileira. Novas escolas de confecção de jóias surgem em todo o Brasil, universidades abrem espaço para a especialização de profissionais , o público consumidor se mostra cada vez mais exigente por qualidade e originalidade, o momento para essa atividade está cada vez mais propício. Porém, se continuar a se ver jóias que não se referencie em nada à cultura brasileira, que não traz em si nenhum simbolismo familiar, e sem uma linguagem própria, de nada vale as iniciativas de formação e capacitação de profissionais,
É preciso enxergar a joalheria baiana, assim como os adornos indígenas e outras e produções brasileiras, de forma menos eurocêntricas, analisa-las portanto, com uma visão descompromissada com os cânones ocidentais de arte. Essa monografia centralizou sua pesquisa nas pencas de balangandãs e nos amuletos baianos, porém, são inúmeras as jóias pertencentes à esse período e à essa cultura. São os punhos, os colares de contas enfeitadas, os colares de alianças, os languidibá ( colares feitos com chifres e asas de besouro), os anéis e brincos, enfim, jóias que merecem igual atenção como fonte de criação e de pesquisa devido a sua simbologia expressa na cultura brasileira bem como o seu valor representativo na história da joalheria no Brasil.